segunda-feira, 29 de março de 2010

Dalce Maria: memórias de Brasília no blog da Paola Lma

por Dalce Maria* "Brasília e eu, ainda meninas"
"Minha primeira lembrança de Brasília é um velocípede ao pé do avião aterrissado. Apesar da então pouca idade, a situação era a da maioria trazida à força naqueles primeiros tempos, por motivos profissionais ou familiares. Vim na cauda do aumento de salário do papai, assessor de imprensa do Jango, desde Vice-Presidente.
Carioca detestava a cidade que usurpara a condição de Capital Federal. Eu não entendia desta perda. Mas não ver vovô, não brincar no Fluminense, não ir à praia, disto, tinha ódio! Daí precisar ser convencida pelo brinquedo. Para adultos, incentivos eram compensações financeiras, apartamentos funcionais, passagens aéreas pra terra de origem, e muito mais. E centenas não topavam - não só os do Rio. Vantagens e empregos não valiam morar no fim do mundo – como qualificavam Brasília.
Os que vinham conquistavam vida melhor. No meio do nada. Era tão seco que armários entortavam se não guardassem copos cheios de água. O vento armava rodamoinhos de poeira vermelha que giravam um carro – os “lacerdões”, referência ao maior inimigo político do JK. Para a gente grande, o tédio: mamãe dava berros em casa, só para ouvir um som. Para crianças, era o máximo. Espaço e liberdade para crescer. E ser.
O banzo do Rio murchou. A cada correria embaixo do bloco com amiguinhos de todos os estados. A cada dia na escola em que se estudava de manhã e brincava a tarde toda. A cada passeio no cerrado catando frutas que não conhecia. A cada chuva de granizo que nem sonhava existir. A cada mergulho na piscina do Brasília Palace Hotel. A cada saída no chapa branca que conduzia papai entre casa e trabalho. A cada visita ao Palácio da Alvorada, onde morava o Presidente, meu amado “tio Jango”.
Uma noite no fim de março, uma tal revolução. Minha mãe voltou do Ministério e chorou. Meu pai só chegou de madrugada: estava ao microfone, chefiando uma tal Cadeia da Legalidade, em defesa do Governo Jango. A noite foi esquisita. Pela manhã, olhando da janela, a W3 Sul, vi pessoas com bandeiras do Brasil e a cantar o Hino Nacional, indo de encontro a um pelotão de soldados. Quando os grupos se aproximaram, os fardados atiraram. Foi um tal de correr, se benzendo…
Meu pai fêz uma mala e colocou perto do hall dividido com a família do outro apartamento: médico, mulher e trigêmeas pequenas. Voltou ao quarto, como se esperasse que o buscassem. Nada perguntei: a intuição me calou. De fato, um silêncio, sinistro, tomou conta da família. E da vizinhança. Dava para ouvir o elevador. Quando subia, as lágrimas da mãe desciam. E o pai me abraçava. Quando o barulho passava do andar, o alívio – grande a ponto de uma criança entender.
Até que à tarde, estava na janela e um carrão preto parou. Uns homens, fardados, desceram. Fez-se o som do elevador, que não passou do nosso andar: parou. Meu pai me beijou. Minha mãe desmaiou. Não entendi, mas congelei. A porta do apartamento era de vidro, via-se através. Do elevador, desceram os fardados. Meu pai pegou a malinha. Mas os homens foram ao outro apartamento de onde saíram com o médico, de jaleco, algemado.
Susto, pena, medo, revolta, impotência. Assim grande parte de Brasília se sentiu entre 31 de março e 1º de abril de 1964. Fatos irreversíveis. Vidas de ponta cabeça. Eu, menina pequena, num dia, filha de autoridade, no outro, de perseguido político. A recém-nascida Capital amadureceu a força. Eu também.

(*Dalce Maria é jornalista, espectadora real da história de Brasília e abre a série de artigos em homenagem ao cinquentenário da capital no blog da jornalista Paola Lima)
(http://www.blogdapaola.com.br/?m=201003)

2 comentários:

debarros disse...

Dalce, li o seu texto e gostei demais. Suas histórias são para serem contadas, não as guarde mais dentro do seu coração. Todos nós, do Panis, estamos ansiosos para conhecer um pouco da sua vida. As histórias do seu pai, que devem ser muitas e as suas no turbilhão daquela tal "revolução".

Esmeraldo disse...

bela história, Dalce