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sexta-feira, 22 de abril de 2022

Memórias da redação: Irineu da Manchete, Irénée do Le Monde • Por Roberto Muggiati

Um filósofo na redação.

Estudante pobre em Paris, com um amigo que cursava psiquiatria, o jovem brasileiro costumava frequentar o cabaré existencialista Rose Rouge.
  Ficavam em pé no bar e, quando muito, consumiam uma cervejinha. Certa noite, em 1952, um créole da Luisiana juntou-se a eles. Viu logo que eram estudantes, condoeu-se da sua sorte: “Mes enfants, je vous invite à boire, les Cognacs sont à moi...” Era o famoso clarinetista Sidney Bechet, que também colocou o saxofone soprano na linha de frente do jazz. Nos anos 1940, com o surgimento do bebop, os velhos gigantes de Nova Orleans caíram no ostracismo. Bechet montou uma alfaiataria para garantir o seu sustento. Ao participar do Festival de Jazz de Paris em 1949, fez tanto sucesso que resolveu se mudar para a França, onde teve uma calorosa acolhida.Naquela noite, Bechet estava sorumbático. Contou aos novos amigos que tinha composto uma bela chanson française, afinal, a França e la Nouvelle Orléans tinham uma relação antiga, desde o final do século 17, quando a Luisiana se tornou colônia francesa. Sidney mal acabara de tocar sua música e a plateia, além de lhe sonegar aplausos, se queixou: “Mais c’est pas du jazz.” Petite Fleur só se tornaria um hit em 1959, com a gravação pelo músico inglês de dixieland Chris Barber, que chegou ao 3º lugar nas paradas britânicas e 5º nos Estados Unidos. Bechet morreu em maio, aos 62 anos, sem saber do seu imenso sucesso.O brasileiro que teve o privilégio da companhia do grande Bechet era Antonio Deusdedit da Cruz Guimarães, que se tornaria um jornalista de renome internacional como Irineu Guimarães. Antes de se fixar na imprensa, ele teve uma curiosa trajetória: nascido em Tamboril, CE, em 21 de julho de 1929, seguiu primeiro a vocação religiosa. Seminário em Fortaleza, convento dos dominicanos em São Paulo e daí, num passo largo, o mosteiro de Saint-Maximin-la-Sainte-Baume, na França. Mas, pouco antes de ser ordenado padre, Irineu abandonou a carreira religiosa para se matricular na Sorbonne, em Paris, onde se doutorou em filosofia. Ainda outra guinada e ele iniciaria a carreira de jornalista no Le Monde, em Paris, onde conservaria o nome dado pelos dominicanos, afrancesado para Irénée.

Casório à francesa comme il faut.


O pai que todo mundo queria.


Casou-se com a francesa Marie Colette Roux em 1957 e decidiu voltar para o Brasil. O casal teve os filhos Michel e Christine. Irineu era correspondente do
Le Monde no Rio quando o país sofreu o rude choque do golpe militar de 1964. Se a sociedade civil era abalada, a imprensa mais ainda, pela censura que, se foi relativamente branda na fase light da ditadura (1964-68), se tornaria absoluta depois do AI-5. As dificuldades eram ainda maiores para um jornal independente de um país democrático, a França, que se sentia no dever de denunciar os desmandos e violências do regime militar.



Muito jornalista foi preso naquele período, era um risco natural da profissão. Mas Irineu Guimarães foi preso nada menos do que 19 vezes. Da última, ficou desaparecido por um longo tempo. Seu respeito à verdade incomodava profundamente a ditadura militar. O filho de Irineu, Michel, contou-me recentemente detalhes daquela prisão: “Os policiais arrombaram a porta do nosso apartamento em Santa Teresa e meu pai exclamou: ‘O que é isso ? Um assalto ?’ Rasgaram com faca o sofá e o berço da minha irmã procurando, segundo eles, armas escondidas. Nada encontraram, mas aquilo foi uma forma de intimidar a família toda. Levaram meu pai que ficou ‘sumido’ vários dias.”

Irineu só seria solto depois que, ao saber do ocorrido pelo embaixador da França no Brasil, o Presidente Charles De Gaulle declarou pela TV francesa que “estava muito preocupado com o desaparecimento do correspondente do jornal Le Monde no Brasil.”

Antes, com o jornalista Régis Debray, durante a cobertura da morte de Che Guevara na selva boliviana, Irineu foi preso e expulso do país. Fez questão de entregar pessoalmente ao irmão de  Guevara, na Bolívia, os últimos testemunhos e fotografias daquele que iria se tornar um mito revolucionário do século.



No início dos anos 1970, a convite de Adolpho Bloch, Irineu Guimarães foi convidado a integrar a redação da Manchete e também atuar como repórter internacional. Acompanhou a Revolução dos Cravos em Portugal e os movimentos de independência de países africanos, em particular as guerras civis de Angola e Moçambique. Quando foi ao Chile cobrir a queda de Allende no golpe sanguinário do general Augusto Pinochet e viu o Estádio Nacional de Santiago coalhado de corpos de estudantes disse que aquele foi seu último ato de bravura. Na redação da revista – eu era o editor na época – Irineu não só era um excelente copidesque, como tradutor ágil do inglês e francês, qualidades muito valorizadas, pelos serviços exclusivos que a Manchete tinha com a revista Time e com as principais agências francesas de reportagens.

O episódio com Sidney Bechet em Paris me foi contado pela jornalista Ana Lúcia Bizinover, melhor amiga/amigo do Irineu em todos os anos da Bloch. Ela lembra:

“Conheci  o Irina nos primeiros dias de 73 . Vinha de ressaca do Réveillon por aquela rua do Novo Mundo. Ajudei-o a chegar à  Manchete. Era a rua Silveira Martins, que margeia os jardins do Palácio da República. Do outro lado havia um bar frequentado pelo pessoal da Manchete. Eu estava com meu fusca estacionado à porta desse bar e o Irineu, que já devia ter tomado umas e outras, falou bem alto:

– Olha aí uma candidata ao forno crematório! 

 O que eu chorei... Claro, ele pediu desculpas pela brincadeira de mau gosto. Na sequência viajou à Europa a serviço e me mandou uma carta linda “pour se faire pardonner”. Guardo a carta até hoje. Ficamos amigos para sempre. Ia às festas da família. Até o fim almoçávamos juntos uma vez por mês (Irineu morreu em 2005, aos 76 anos). Conheci o Michel e a Christine adolescentes. Michel tem 63 anos, é engenheiro aposentado e mora no Sul da França. Christine morreu no ano passado, demorei a saber. Pouco antes me deu um exemplar de Le Rouge et le Noir com anotações do Irineu, ela sabia que eu tinha paixão por esse livro.”



A “Santa Ceia”, circa 1977: Alberto de Carvalho, Ivan Alves, Wilson Cunha, Flávio de Aquino, Sammy Davis Jr (ao fundo), Roberto Muggiati, Heloneida Studart, R. Magalhães Jr, Wilson Passos, Argemiro Ferreira, Pedro Guimarães, Ney Bianchi, Carlos Heitor Cony e Irineu Guimarães. Toda vez que o Cony entrava na redação o Irineu batia palmas e dizia: “Salve o único cristão que passou a perna num judeu!”


Irineu ainda estava na Manchete em 1979 quando a abertura política azedou as relações entre empregados e patrões na Bloch. Uma segunda-feira, dia de fechamento da revista, em adesão ao movimento de todas as redações cariocas, os jornalistas da Bloch fizeram uma greve simbólica de silêncio e paralisação dos trabalhos durante uma hora. Adolpho Bloch investiu ensandecido contra a redação da Manchete. Irineu foi seu principal alvo:

– E o padre não quer rezar? Será que fez voto de silêncio?!

Ironicamente, Adolpho estava na pista certa. Assim que se aposentou Irineu traduziu, a pedido dos monges trapistas do Paraná – ordem conhecida por seu rigoroso voto de silêncio, o livro francês Les Mystères de la Trappe, edição bilingue em latim e português, uma obra-prima da paciência, fruto do seu conhecimento do latim, publicada no Brasil com o título de Os Cistercienses. Talvez o entrevero com Adolpho tenha pesado na decisão, mas há muito tempo Irineu sentia que devia ser mais valorizado profissionalmente. Acabou saindo da Bloch para ser produtor do noticiário internacional da TV Globo. Depois foi para o IBGE onde se aposentou como editor-geral das publicações. 

Uma das últimas vezes que estivemos juntos foi numa feijoada de sábado na casa do Cícero Sandroni no Cosme Velho. Diverti-me à beça assistindo a um intenso duelo verbal entre ele e Mário Pontes, discutindo os méritos e apontando os defeitos de suas respectivas cidades, Tamboril e Nova Russas, distantes apenas 30 quilômetros uma da outra. Foi um misto de tiroteio verbal no OK Corral e desafio de repentistas nordestinos inesquecível.

sexta-feira, 8 de março de 2019

Admirável Novo Mundo • Por Roberto Muggiati

A primeira vez que vi o Novo Mundo foi em junho de 1962, quando eu e um colega – depois de uma viagem de dois dias de Curitiba ao Rio de carona numa vistosa Bentley  – fomos praticamente desovados na porta do hotel, entre os dois severos leões, pelo não menos severo diretor teatral Gianni Ratto: “Bom, rapazes, deixo vocês aqui, agora vou subir para Santa Teresa.”

Eram tempos de Jango, tínhamos participado de um efervescente festival de CPCs em Curitiba.

Naquele momento, eu mal podia imaginar que, em menos de três anos, estaria trabalhando na Manchete e, depois da mudança de Frei Caneca para o Russell, participaria também ativamente dos “trabalhos” no Novo Mundo, nosso Posto Avançado Etílico.

Em foto recente, Ana Lúcia Bizinover, Martins,
o lendário barman
do Novo Mundo, e Roberto Muggiati.
Nos últimos cinco anos, frequentei assiduamente o bar no mezanino do hotel, onde rolaram belos shows do “pianista da casa”, Osmar Milito: numa fase anterior com meu mestre de saxofone Mauro Senise, mais recentemente com a carismática cantora Indiana Noma.

Momentos mágicos de jazz e bossa nova.

Enfim, mais um gigante que não resistiu à crise. Mais uma marca carioca que se apaga...

sexta-feira, 23 de janeiro de 2015

Martins: a "caixa preta"dos Blochbusters ou Blues etílicos no Novo Mundo


Ana Lúcia, Martins e Muggiati, no Novo Mundo, no dia da
Happy Hour que o bar do hotel oferece às terças, quintas
 e sábados. Foto de Raquel Feferbaum
por Ana Lúcia Bizinover 
Dia de Santo Antônio, 13 de junho de 1935. Festa na cidade de Barcelos (norte de Portugal) e em especial para a família Martins Loureiro, com a chegada do bebê António. Que outro nome poderia ter? Antônio Martins Loureiro está há 57 anos no Rio de Janeiro.  Há 57 anos trabalha no Hotel Novo Mundo, na Praia do Flamengo.  Nasceu destinado a ser o MARTINS, querido, guardião da moral e dos maus costumes de redações inteiras de Bloch Editores. Martins, como se imagina, é um livro discreto, fechado, mas com boas brechas, das muitas sapequices dos jornalistas da Manchete & Cia. Em junho, Martins completa 80 anos, em plena e elegante forma, agora não mais como o nosso garçom favorito do bar do Novo Mundo, mas como maître executivo do hotel. E adianta: em breve será inaugurado um bistrô com vista deslumbrante no 12º andar.
Martins conversou com a reportagem do Panis cum Ovum nos intervalos dos sets do show do trio do pianista Osmar Milito (Pascoal Meirelles à bateria, Sérgio Barrozo, ao contrabaixo e a crooner Leila Maria), atração da Happy Hour que o bar Grand Prix de um Hotel Novo Mundo renovado e chique, oferece às terças, quintas e sábados. Outros grandes instrumentistas fazem fila para dar canja com o trio. Categórico, Martins afirmou: “Eu vi a Manchete nascer, crescer, viver e morrer”. Muito antes da sede do Russell ser inaugurada, ele acompanhou, com amigos que moravam nas cercanias da Rua Frei Caneca, a expansão da editora. Muito, mas muito antes mesmo que o Lairton ligasse para o Martins lá no bar, aflito, porque “tio” Adolpho estava furioso dando por falta de um ou outro funcionário na redação.  Enquanto falava com Lalá, Martins apontava para o dito cujo que o patrão convocava dizendo: “Ai, cá ele não está, vamos a ver se está no banheiro”, para dar tempo do sumido voar direto pro oitavo andar. Em questão de um ou dois minutos o faltante surgia perante o “titio” com a cara mais santa e . . . o santo bafo de uísque. A maioria das vezes, Adolpho clamava pelo Irineu Guimarães, Narceu de Almeida, Cesarion Praxedes, Alberto de Carvalho, Ney Bianchi, Ivanildo Sampaio (hoje diretor de redação do Jornal do Commercio, do Recife), Orlandinho Abrunhosa, Hélinho Santos – aquele que andava de costas e tinha como bicho de estimação um dromedário imaginário. A turma de “residentes” do bar foi crescendo com a adesão do Luis Carlos Cabral, Pindé, Alberto Rajão e muitos mais.  Chico Augusto e Expedito Grossi, “sempre elegantes no trajar”, como observou Martins, davam sua “passadinha” diária por lá. A ala feminina era bem representada por Ana Maria Abreu, Martha Alencar, Regina d’Almeida. Eu mesma cheguei a descontar um cheque com Martins. Certa vez, conta Martins, Ubirajara (não lembra o sobrenome), muito bêbado, adormeceu com o cigarro acesso e queimou feio o colchão de casa. Para que ele não apanhasse da patroa, o bom Martins surrupiou um colchão do hotel, que o Bira saiu arrastando.  Numa das greves de jornalistas, a turma levou um mimeógrafo (alguém se lembra desse treco?) para o bar “do Martins”. E tasca a imprimir panfletos. Entraram uns bacanas anti-grevistas e disseram: “Ué aqui é a administração da Bloch?” “Não senhores, aqui é a redação da revista Manchete”, retrucou calmamente nosso Alberto. Amores? Paixões? Namoricos? Martins assistiu de camarote a muitas relações, feitas e desfeitas às vezes num apagar de velas. Discreto, prefere não nomear os pares (ou, excepcionalmente, os triângulos), mas garante que viu coisas de deixar os cabelos em pé. Presidentes e políticos. A maioria, em algum momento, hospedava-se no Novo Mundo. “Servi desde os presidentes Jânio Quadros, Tancredo Neves e Luiz Inácio Lula da Silva, aos governadores Adhemar de Barros Carvalho Pinto, Leonel Brizola, ao ministro Hélio Beltrão (desse eu gostava muito). E revela algo conhecido de poucos: “Eu fazia uns bicos lá na Manchete, chamado pelo maître Severino Ananias Dias, que acho que foi a pessoa em que mais o Senhor Adolpho confiou. E, é claro, fiquei amigo também do ex-presidente Juscelino Kubitschek. “Antonio Martins Loureiro, viúvo desde 1994, duas filhas e uma neta, mora em Alcântara (São Gonçalo, Niterói). Vai e volta de ônibus todos os dias. Tem família na Alemanha e na França. Martins ficou 48 anos sem ir à terrinha. Visitou Lisboa em 2005 e 2011. Planos? “Viajar à Portugal para, no dia oito de outubro, comemorar os cem anos da minha mãe, D. Isaura. Ela é carioca, sabia?”

PS:
Minha história preferida do Admirável Novo Mundo da Manchete (por Roberto Muggiati)
Nos bons tempos – idos dos anos 70 – os repórteres das sucursais vinham fechar suas matérias na redação do Russell e se hospedavam no Hotel Novo Mundo, quase ao lado da MANCHETE. Um destes, um jovem repórter de São Paulo – dou a dica: era enteado de um famoso dublê de biólogo e sambista – foi almoçar num restaurante do Catete com o colega carioca, Luiz Carlos Sarmento, pinguço juramentado, e apagou de tanto beber. Na ocasião a rua do Catete, com a construção do Metrô, se transformara numa vala enlameada a céu aberto. Sarmento, apesar de meio alterado, não vacilou. Acostou um operário do metrô, confabulou com ele e alugou um carrinho-de-mão, incorporando o peão como piloto. Botaram o repórter paulistano na caçamba e o desovaram na portaria do Novo Mundo. Imaginem a cena, um peão e um carrinho de mão enlameados adentrando o sacrossanto espaço de mármores e cristais do hotel. Sarmento ainda gritou ao pessoal atônito da recepção: "Paga o nosso amigo aí e bota os dez paus do carreto na conta do 703!"