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quarta-feira, 1 de setembro de 2021

Ainda Jânio: “Não qui-lo, mas vi-lo” • Por Roberto Muggiati

 

Numa noite erma de sábado em Curitiba, quatro meses antes do pleito de 3 de outubro de 1960, três ou quatro jovens redatores da Gazeta do Povo fomos abduzidos e levados ao casarão senhorial dos Camargo na Praça Osório. Lá nos apresentaram a um senhor de bigode e de óculos de aros pesados pretos, gravata e terno idem, aparentando mais do que os seus 43 anos. Era Jânio da Silva Quadros, acompanhado da mulher, dona Eloá, e da filha, Dirce Maria – Tutu para os íntimos – que em breve sairiam do anonimato para os papeis de Primeira Dama e Primeira Filha.

O “Homem da Vassoura” não me causou a menor impressão e não guardei a mais vaga lembrança do que falamos – embora os anfitriões nos pedissem encarecidamente silêncio absoluto sobre o encontro. O único detalhe que me marcou foram os vestígios de caspa sobre as ombreiras do terno escuro de Jânio. Aquilo entrou para o folclore político, diziam até que Jânio tinha fornecedores exclusivos de seborreia...

Colecionei presidentes desde a infância, Getúlio apertou minha mão quando eu tinha cinco anos, na inauguração da Grande Exposição de Curitiba de 1942, organizada por meu tio Achilles Muggiati; depois encarei o general Dutra de uniforme de gala (ambos) na inauguração do Colégio Estadual do Paraná em 1950; JK e Jango entrevistei em Curitiba como repórter – passei ao largo dos generais da ditadura – Sarney, Collor, FHC, Lula e por aí vai. Já o atual, como se dizia na Manchete, nemporunca!

Quando Jânio fez forfait em 1961, li a manchete no New York Herald Tribune em Paris, na banca do American Express, perto da Opéra, agendando meu Grand Tour da Itália nos meses de setembro e outubro. A bolsa de estudos de dois anos em Paris emendou com um contrato de três anos para trabalhar em Londres no Serviço Brasileiro da BBC, o que me poupou até meados de 1965 da ditadura militar, mas eu não imaginava que teria de amargar – como cidadão e jornalista – mais vinte anos de repressão e censura. Tudo, em última análise, por causa da leviandade do Sr. Jânio da Silva Quadros.

  

sábado, 14 de março de 2020

Cuidado com os idos de março! • Por Roberto Muggiati


1954, Curitiba, Gazeta do Povo * Sentado à direita durante movimento que reivindicou melhores
condições de trabalho na redação.

1961, Berlim • Estudante de jornalismo em Paris, visitando o Muro, erguido quatro meses antes.



1964, Londres* No Serviço Brasileiro da BBC, com Floriano Parreira e Nemércio Nogueira

1968, São Paulo • na linha de frente da Veja, na extrema esquerda.

1977, Rio de Janeiro • O editor da Manchete e a brilhante equipe na famosa foto da Santa Ceia.

1986, Londres • Sempre repórter, no Palácio de Buckingham, cobrindo o casamento do Príncipe Andrew.

Ouvi a expressão pela primeira vez em Júlio César de Shakespeare, o filme de 1953, com Marlon Brando, dirigido por Joseph Mankiewicz.  Um vidente alertava César: “Cuidado com os idos de março!” A caminho do Senado. César passa pelo vidente e o provoca: “Os idos de março já chegaram”. O vidente, chamado Spurinna  –um arúspice que fazia adivinhações examinando as entranhas de animais sacrificados – replica: “Mas ainda não se foram...” Não deu outra: César é apunhalado por sessenta senadores, na conspiração liderada por Brutus e Cássio. Eu imaginava que os idos de março – pela forma plural da expressão – fossem o final do mês. Só muito tempo depois fiquei sabendo que os idos de março (em latim Idus Martiae, era um dia do calendário romano que correspondia a 15 de março, marcado por várias práticas religiosas e notável para os romanos como o prazo final para a quitação de dívidas.

Inadvertidamente, foi nos idos de março, dia 15, no ano de 1954, uma segunda-feira, que subi os 22 degraus do casarão na Praça Carlos Gomes, 4, em Curitiba, adentrando pela primeira vez a redação da Gazeta do Povo e iniciando uma carreira jornalística que fecha, neste turbulento 2020, 66 anos de muitas aventuras e emoções. Deixei a Gazeta em 1960 para estudar jornalismo em Paris durante dois anos; passei três anos em Londres no Serviço Brasileiro da BBC; de volta ao Rio em 1965, comecei uma temporada de 35 anos na Manchete, descontados os dois anos que passei em São Paulo na equipe inicial de Veja, em 1968-69.

Daqui para onde? Se eu viver mais alguns anos – com saúde sem motivo justo – em 2025, aos 88 anos, começo a superar os setenta anos de carreira de um jornalista esportivo paulista, de sobrenome Nicolino, morto recentemente aos 90, que detém o recorde internacional do Livro Guinness como o jornalista mais longevo na profissão.

Mas isso não chega a ser uma meta para mim.

O que conta são os dias que correm, um de cada vez, em que me ocupo de compartilhar com o próximo minha experiência como jornalista e cidadão – meu livro de memórias chama-se A vida é uma reportagem – esta gentil mistura de vida e escrita que supera todas as pedras do caminho.

domingo, 18 de fevereiro de 2018

NOSTALGIA DO CHUMBO – Nos tempos da linotipo


Por Roberto  Muggiati 


li.no.ti.po  s. f. Tip.. Máquina que compõe e funde linhas em bloco, de uma liga de chumbo, estanho e antimônio, com o auxílio de matrizes reunidas mediante operação de um teclado.


Na semana passada, dois colunistas importantes se comoveram com as linotipos que, contracenando com Tom Hanks e Meryl Streep, os protagonistas de The Post, praticamente roubam a cena no filme de Spielberg. Na quinta-feira, 15, Luiz Fernando Veríssimo escreveu, na crônica Amores: “The Post é uma história de amor, o amor de jornalistas pelo jornalismo. Me comovi com os linotipos. A mudança da impressão quente para a fria foi radical.” No sábado, 17, foi a vez de Arnaldo Bloch, no artigo O linotipo de Spielberg: “Em The Post, a bicicleta voadora está no correr dos caracteres nas caixinhas alimentadas pelo linotipista, exibindo as palavras-chave do grande furo.”


Vou aderir à homenagem e evocar, dos meus primeiros tempos de jornalismo, a visão daqueles linotipistas heróicos sentados diante de suas máquinas e tendo ao seu lado um copo de leite, considerado um antídoto seguro contra as inalações do chumbo, em estado permanente de efervescância na gráfica.

Comecei a trabalhar em jornal aos dezesseis anos – precisamente no dia 15 de março de 1954, uma segunda-feira – na Gazeta do Povo de Curitiba, que ficava num casarão da Praça Carlos Gomes.

Cinco meses depois eu vivia as emoções de minha primeira edição extra, com o suicídio de Getúlio Vargas. Eu trabalhava na redação, no primeiro andar. Minha tarefa era colocar em português decente as notícias que chegavam do Rio. Ainda não tínhamos teletipo e os telegramas caíam literalmente do céu: um velho senhor tranca¬fiado num cubículo, a cabeça dobrada ao peso de enormes fones de ouvido, recebia os últimos despachos em código Morse e os traduzia datilografando numa velha Remington. Por coincidência, o telegrafista Vergès era um kardecista convicto e tudo aquilo me parecia uma operação espírita. Uma notícia típica da época podia dizer em bom telegrafês: “DEP FED DIX HUIT ROSADO AVIONOU MOSSOROH PARA ENCONTRO SUAS BASES ELEITORAIS.” Ou seja: “O deputado federal potiguar Dix-Huit Rosado Maia viajou de avião para Mossoró a fim de se encontrar com suas bases eleitorais.”

Num galpão ao lado do casarão, as fotos eram transformadas em clichés por um ex-soldado russo, Konstantin Tchernovaloff, que lutara na Guerra Civil de 1920 — não sei se nos brancos ou nos vermelhos — e parecia um cossaco diabólico em meio aos clarões do seu arco voltaico. Os clichês metálicos eram pregados depois em blocos de madeira da mesma espessura das linhas de tipo vomitadas pela Mergenthaler de 1m75 de altura. Um revisor, com a clássica pala verde na testa, ocupava um mezanino que era um purgatório entre a redação (no primeiro andar) e a oficina (no térreo), versão moderna do Inferno de Dante, envolvendo com seus vapores de chumbo a bateria de linotipistas disposta diante das páginas – que eram parafusadas em molduras de ferro como nos pasquins do Velho Oeste — e da prensa plana obsoleta que imprimia as nossas verdades absolutas de todo dia.

Obrigado, Spielberg, pela lembrança.

segunda-feira, 27 de junho de 2016

Deu no Portal Imprensa: ameaça a jornalistas da Gazeta do Povo



(do Portal Imprensa) 
Cinco profissionais do jornal Gazeta do Povo podem ser condenados por faltarem a uma audiência na última sexta-feira (24/6). Eles se ausentaram, pois tinham outra oitiva agendada quase no mesmo horário e a 400 quilômetros de distância do local.

De acordo com o G1, desde abril, o grupo já percorreu mais de nove mil quilômetros. “Fisicamente é impossível. A não ser que a gente se teletransportasse de um lugar para o outro, não teria como comparecer as duas ao mesmo tempo”, explicou o jornalista Chico Marés, um dos profissionais que responde aos processos.

O jornal virou alvo de ações judiciais, movidas por promotores e magistrados, depois da publicação de uma série de reportagens que mostrou salários acima do teto constitucional pagos pelo Tribunal de Justiça (TJ) e pelo Ministério Público do Paraná (MP-PR).

Os textos indicavam dados dos portais da transparência dos órgãos e foram publicados em fevereiro. Desde então, os jornalistas são obrigados a comparecer em todas as audiências, marcadas em diferentes comarcas.
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domingo, 6 de março de 2016

BRINCANDO DE ESPIÃO - O primeiro Natal do Muro de Berlim


POR ROBERTO MUGGIATI 

Berlim, inverno de 1961: o autor diante do Portão de Brandenburgo. Foto: Arquivo Pessoal


O jornalista no cenário da Guerra Fria. Ao fundo, a placa ACHTUNG! Sie verlassen jetzt WEST-BERLIN (ATENÇÃO! Você está deixando agora BERLIM OCIDENTAL). Foto: Arquivo Pessoal
E em uma ainda precária torre de vigilância (o Muro havia sido erguido apenas quatro meses antes) do lado ocidental do Portão, na Pariser Platz. Foto: Arquivo Pessoal

O filme de Spielberg Ponte dos Espiões me trouxe vivas lembranças da primeira visita a Berlim, em dezembro de 1961, quando o Muro tinha apenas quatro meses de idade. Eu diria – apelando para Shakespeare – que aquele foi o inverno do meu descontentamento. Terminara um curso de jornalismo em Paris, viajara o verão todo, vivera o sol da meia-noite na Finlândia e o sol do meio-dia na Itália e de repente, sem dinheiro, só me restava voltar para Curitiba.

"Ponte dos Espiões": Tom Hanks no papel de James Donovan,
o advogado que defende um espião soviético capturado
pelos americanos em plena Guerra Fria.
Como último recurso para ficar um pouco mais na Europa, lembrei o convite do governo alemão, feito ainda em Curitiba, antes de embarcar para a França. Reatei os contatos e, na noite de 10 de dezembro, um domingo, eu pegava um avião da BEA no aeroporto de Orly com destino à Alemanha. Depois de uma segunda-feira protocolar em Bonn, voei no começo da noite para Berlim. Aterrissei no aeroporto de Tempelhof vendo espiões por toda parte. A cidade me apavorava e ao mesmo tempo me fascinava. Imaginem uma megalópole partida ao meio: o lado ocidental, capitalista; o lado oriental, comunista. E essa metade capitalista estava incomodamente encravada em território comunista. Assim era a Berlim da época. Para tornar a divisão ainda mais concreta, os alemães orientais ergueram o Muro, na madrugada de 13 de agosto de 1961.
Madrugada de 13 de agosto de 1061:
começa a construção do Muro de Berlim.
Foto DP 
No dia anterior ao aniversário de quatro meses do Muro, fui levado por meus gentis anfitriões para posar diante do Portão de Brandenburgo. A série de fotos feita naquela terça-feira gélida, 12 de dezembro, foi distribuída para órgãos de imprensa de todo o Brasil. Uma delas mostrava o jornalista de 24 anos, representante da Gazeta do Povo, ao lado do sinistro cartaz: ACHTUNG! Sie verlassen jetzt WEST-BERLIN (ATENÇÃO! Você está deixando agora BERLIM OCIDENTAL). O Muro que eu vi de perto era uma muralha de blocos de concreto, cimentados uns sobre os outros, reforçada por cercas de arame farpado, além de 300 torres de observação, iluminação abundante, alarmes eletrônicos, centenas de cães de guarda, valas anticarro e antitanque e até arames de tropeço que disparam balas. Mais de 30.000 soldados orientais mantinham a vigilância ao longo dos 165,7 quilômetros totais — a soma do muro central (entre as duas Berlins) e das muralhas que separam Berlim Ocidental do território da Alemanha Oriental que a comprime – e oprime.
Em contraste com o frio das ruas, os alemães se mostraram muito calorosos. Além da tradição berlinense de hospitalidade, eles sabiam que sua própria sobrevivência dependia de um trabalho inteligente de relações públicas. Minha simpática personal interpreter, Ursula, levou-me um dia para almoçar num restaurante asiático. Atraiu-nos no cardápio um prato indonésio, Reistafel aos 48 temperos. O garçom disse era preciso encomendá-lo com 24 horas de antecedência. Encomendamos e voltamos lá no dia seguinte para saborear nosso sofisticado Reistafel. Às vezes eu me incorporava a um grupo de jornalistas brasileiros, também em visita oficial.
Montgomery Clift em "Julgamento em Nurembergue"

Judy Garland no mesmo filme

O Berlin Hilton em cartão postal dos anos 1960.  Então recém construído, o hotel era um centro nervoso
da Guerra Fria. Do terraço, era possível avistar os lados ocidental e oriental de Berlim.  
Uma noite fomos a um coquetel no terraço do Berlin Hilton, celebrava-se a estreia mundial do filme Julgamento em Nurembergue. Vi de perto meus ídolos Montgomery Clift e Spencer Tracy, e a musa do meu primeiro filme (O mágico de Oz), Judy Garland, uma ocasião rara: os três morreriam respectivamente cinco, seis e oito anos depois.
Curiosamente, o advogado interpretado por Tom Hanks em Ponte dos Espiões, James Donovan, foi o assistente do promotor dos EUA nos Julgamentos de Nurembergue, e o encarregado de apresentar as provas visuais. Por pouco não cruzei com James Donovan em Berlim: ele chegaria à cidade um mês depois, em fevereiro de 1962, para promover a lendária troca de espiões.
Na ilustração, o Ballhaus Resi, onde a Berlim do pós-guerra tentava recuperar o clima vintage da era dos cabarés.
A noitada mais divertida em Berlim foi no Ballhaus Resi, antigo salão de baile transformado em restaurante. O espetáculo no palco não era de humanos, mas de águas dançantes, “die schönsten Wasserspiele der Welt” — as mais bonitas do mundo. O salão imenso era todo tomado por mesas numeradas. Cada mesa era equipada com um telefone e um sistema de mensagens enviadas por “pneumáticos”: você via uma garota do seu agrado, escrevia um bilhete com o número das mesas (a sua e a dela), colocava o bilhete dentro de um cilindro e enfiava o cilindro na tubulação de ar comprimido que levava a mensagem à destinatária. (Era o autêntico “torpedo”, a expressão deve ter surgido daí...) Não só mandei, como recebi alguns torpedos: as garotas alemãs do pós-guerra já eram bastante salientes.
Era esse o clima da cidade sitiada que tentava recuperar o brilho da Berlim da década de 1920, os Anos do Cabaré. Mas o fantasma da Guerra Fria lançava uma sombra sobre tudo e sobre todos. Passados alguns dias, pedi para visitar Berlim Oriental, o “outro lado”. Não era uma descortesia, ao contrário, era tudo o que meus anfitriões queriam.
Enquanto a Berlim Ocidental – alimentada por verbas do mundo inteiro – era uma vitrine expondo as mais ricas benesses do capitalismo, Berlim Oriental era uma cidade pobre, escura e triste. Colocaram-me num ônibus de turismo que rodou uma tarde toda por Ostberlin. Foi uma visita insossa, coroada pela visita ao cemitério dos heróis soviéticos tombados na guerra contra o nazismo. Um imenso bloco de granito, que Hitler destinava ao Arco do Triunfo celebrando a vitória do Terceiro Reich, foi transformado num monumento aos gloriosos soldados vermelhos. Mostrei-me insatisfeito com a visita burocrática e meus obsequiosos anfitriões providenciaram no dia seguinte um táxi com um chofer autorizado a circular pelo lado oriental. Assim que atravessamos o famoso Checkpoint Charlie (ponto de travessia controlado pelos americanos), o chofer confraternizou demagogicamente com seus colegas orientais, oferecendo-lhes maços de cigarros. Apontava para a paisagem cinzenta e dizia: “Unterschiede! Unterschiede!” (“Veja só a diferença, o contraste!”) Após algumas voltas pela cidade, o táxi foi parar de novo no cemitério dos heróis soviéticos. (Ironicamente, 18 anos depois, visitando Berlim a convite, como editor da Manchete, repeti o mesmo roteiro com o infalível gran finale: a romaria ao cemitério dos soldados soviéticos.)
Houve ainda uma situação kafkiana em Berlim Ocidental: num centro de refugiados, entronizaram-me como uma espécie de juiz para ouvir e interrogar, com a mediação de intérpretes, um punhado de felizardos que haviam escapado do “inferno soviético.” Eram relatos cheios de horror, mas por vezes me pareciam ensaiados. Até que ponto eu podia confiar na sua sinceridade? Não passariam eles, como o chofer de táxi, de hábeis atores encenando uma farsa? No fundo, na sórdida guerra de propaganda da época, entre mortos e feridos não se salvou ninguém.
O mundo mudou, o Muro caiu, mas jamais esquecerei aqueles dias de desesperança da Guerra Fria, do tenebroso conflito entre duas ideologias que racharam o planeta ao meio, uma guerra travada no campo psicológico à sombra do terror nuclear. (Roberto Muggiati)

sábado, 30 de agosto de 2014

Roberto Muggiati escreve: "A primeira vez que vi Paris"

Roberto Muggiati na Paris de 1961: encontros com atrizes e jazzistas. Foto Acervo RM
por Roberto Muggiati (Especial para a Gazeta do Povo) 
Em fevereiro de 1961 eu morava na Place Dauphine, na Île de la Cité, aquela ilha no centro do mapa de Paris. Parece um navio puxando uma barcaça menor, a Île Saint-Louis. Encontrei um hotelzinho barato, o City Hôtel, no gargalo da praça, que dava para o Pont Neuf. Se a Ilha era o coração de Paris, a Place Dauphine era “a vagina de Paris,” segundo o jornalista Jacques Lanzmann.
Um triângulo equilátero, a praça era fechada na base pelo Palais de Justice, que eu passei a frequentar. O julgamento do açougueiro ciumento que matou a mulher a cutiladas – era como assistir de graça àqueles filmes legais de André Cayatte, tipo Somos Todos Assassinos. A Notre-Dame, catedral das catedrais, ficava por ali, seus portais esculpidos, as mandalas multicoloridas de seus vitrais, suas torres gêmeas e as soturnas gárgulas confidentes de Quasímodo.
Naquele inverno ameno – a temperatura passou dos 20ºC e banhistas afoitos mergulharam nas águas do Sena – eu descia toda manhã para o bico da ilha, o Square du Vert-Galant, apelido dado ao sedutor rei Henrique IV. O feito talvez tenha inspirado. Foi ali que Cortázar localizou o misterioso crime do conto “Las Babas del Diablo”, que Antonioni transplantou para um parque londrino em Blow-Up – Depois Daquele Beijo.
Os livros que eu lia na pracinha verdejante eram os últimos lançamentos beats da City Lights, vendidos no Le Mistral, livraria da rive gauche que dava para as rosáceas da Notre-Dame. Ou a literatura socialista da livraria Maspéro, onde comprei Aden-Arabie, de Paul Nizan, que começava assim: “Eu tinha vinte anos. Não deixarei ninguém dizer que é a mais bela idade da vida.”
Minha primeira incursão literária em Paris foi um desastre. Apresentei-me a uma aula sobre zen-budismo no Collège de France. Um colegiado de anciãos de terno me encarou desconfiado. A aula era em chinês antigo e eu saí batido, trombando com uma garota americana, mal informada como eu. Bunny, cabelos de milho, morava num quarto sem janela. É algo que você nunca deve fazer em Paris: morar num quarto sem janela. Mesmo bolsista pobre, eu morava numa mansarda no quinto e último andar do City Hôtel, a janela cortada no telhado de ardósia inclinado. A vista dava para o Sena e o Museu do Louvre. Toda noite eu fazia os vinte minutos a pé que separavam meu hotel do Centre de Formation des Journalistes. Atravessava sempre pelo grande mercado dos Halles, que Zola batizara de “o ventre de Paris”. A cada noite escolhia um cenário: as hortaliças vicejantes, as verduras e os legumes de uma variedade infindável; ou as carcaças inteiras de bois, penduradas em ganchos e enfileiradas numa linha de montagem vermelha e sanguinolenta; os peixes e frutos do mar, em seus leitos de gelo picado e todos os matizes de cinza e azul.
Encontros
Era difícil conhecer escritores em Paris. Atrizes de cinema e músicos de jazz a cada esquina. Cheguei a uma proximidade perturbadora de Brigitte Bardot, Françoise Arnoul e Marina Vlady, musas sonhadas na distante Curitiba. Conversei na porta de um teatro com Farley Granger, ator de Festim Diabólico e Pacto Sinistro de Hitchcock. Toda manhã eu via Bud Powell tomando café e água mineral na terrasse do Deux Magots; estive a centímetros de Thelonious Monk, no Blue Note.
Escritores, só mesmo os mortos do cemitério do Père Lachaise, que visitei com o cineasta Joaquim Pedro. Uma exceção: o poeta beat Gregory Corso, com quem bati longos papos nos cafés. Na porta do Beat Hotel pedi uma entrevista a Allen Ginsberg, mas ele saiu correndo. No Old Navy Café, em St Germain, fazia ponto Arthur Adamov, um franco-russo ligado ao Teatro do Absurdo que nem os franceses conheciam. (Morreu de uma overdose de barbitúricos dez anos depois.)
Tempos depois fiquei sabendo que Julio Cortázar frequentava o Old Navy. Gabriel García Márquez, seu fã, o viu ali certa vez, escrevendo horas a fio, mas não ousou interrompê-lo. O peruano Vargas Llosa, contou em Travessuras da Menina Má, que costumava receber quentinhas pela porta dos fundos do restaurante México Lindo, onde tinha um amigo na cozinha. Entrei muitas vezes no México Lindo, pela porta da frente. Fico a imaginar, um futuro Prêmio Nobel de Literatura comendo os restos do meu prato...


Paris e sua fama de cidade literária - nos 50 anos de "Paris é uma festa", Muggiati mostra que a cidade não se resume somente à celebrada turma de Hemingway em 1920

Para Henry Miller, o Sena era "como uma grande artéria correndo pelo corpo humano". A foto reproduzida de um cartão postal é de Cartier-Bresson

William Faulkner em frente à Catedral de Notre-Dame, em Paris, em 1925
por Roberto Muggiati (Especial para a Gazeta do Povo)
Há 50 anos, saía o primeiro livro póstumo de Ernest Hemingway. Em A Moveable Feast (Paris É uma Festa), ele descreve a vida na cidade nos anos 1920 e sua importância para escritores como ele, Scott Fitzgerald, John Dos Passos, Ezra Pound e outros, que frequentavam o salon de Gertrude Stein. Em 2011, Woody Allen revisitou a cena no filme Meia-noite em Paris, com deliciosas reencarnações de personagens da época (Cole Porter, Josephine Baker, Picasso, Dalí), além dos americanos amigos de Miss Stein, que ela batizou de “geração perdida”.
Ao retratar sua entourage, Hemingway não poupa sequer a si mesmo, um garotão do Meio-Oeste americano jogado às feras na cidade mais cosmopolita do mundo. Particularmente ferino é o perfil de Fitzgerald, em crise existencial por achar que seu pênis era muito pequeno. Ernest leva Scott à seção de escultura grega do Louvre e mostra a ele que o pinto dos rapazes helenos também não era lá essas coisas. Mas nem tudo são farpas no livro e saímos dele com uma suave sensação de nostalgia. Diz Hemingway: “Se você teve a sorte de morar em Paris quando jovem, então, aonde quer que vá pelo resto da vida, ela persiste com você, pois Paris é uma festa móvel."
Mas a Paris literária não se resume à turma de Hemingway. Pelos mesmos cafés de Montparnasse circularam um William Faulkner obscuro, que não deixou marcas, a cabeça já imersa na sua imaginária Yoknapatawpha. O boêmio Henry Miller, que imortalizou a cidade em seus romances autobiográficos, preferia a companhia do fotógrafo húngaro Brassaï e dos escritores franceses Anaïs Nin, Alfred Perles e Blaise Cendrars. No final de Trópico de Câncer, ele escreve: “O Sena flui tão quieto que a gente mal nota sua presença. Está sempre ali, quieto e discreto, como uma grande artéria correndo pelo corpo humano.”
Houve até uma rive noire, a Paris dos americanos negros, o livro Do Harlem ao Sena trata só disso. Escritores como Richard Wright, Chester Himes e James Baldwin fugiram do racismo e fizeram da França sua nova pátria, como muitos músicos de jazz. E, é claro, houve os beats, a partir do final dos anos 1950: Allen Ginsberg, William Burroughs e Gregory Corso instalaram-se no que seria conhecido como Beat Hotel, numa viela junto ao Sena. Burroughs e Corso eram editados em inglês pela Olympia Press francesa, a mesma que lançou Lolita de Nabokov em 1955, seguindo o exemplo da Shakespeare and Company, de Sylvia Beach, que publicou o Ulysses de Joyce, em 1922.
Procope
Mas vamos deixar os amerlauds de lado. Já no século 15, as tavernas estavam cheias de poetas como François Villon (autor do belíssimo verso “Mais où sont les neiges d’antan?/ Onde estão as neves de antigamente?”). O primeiro café literário surgiu em 1686 em Saint Germain-des-Près, o Procope – seu dono era o siciliano Francesco Procopio dei Coltelli. Obviamente, servia café, a exótica bebida importada dos trópicos, e os primeiros sorvetes (sorbets), em taças de porcelana. Próximo da Comédie Française, o Procope foi primeiro um café teatral, mas já no século 18 era um efervescente centro para a discussão das novas ideias. Os Enciclopedistas planejaram sua grande obra lá – Diderot, Montesquieu, Rousseau e Voltaire, recordista no consumo de café, 40 taças ao dia, misturado com chocolate. A Revolução Francesa foi praticamente tramada em suas mesas, por Danton, Robespierre e Marat. O barrete frígio, símbolo da Liberté, foi exibido pela primeira vez no café. Os pais da independência americana, Benjamin Franklin e Thomas Jefferson, também respiraram os ares libertários do Procope. Lá, o estudante brasileiro José Joaquim da Maia pediu o apoio de Jefferson à Inconfidência: “Sou brasileiro e sabeis que minha desgraçada pátria geme em um espantoso cativeiro, que se torna cada dia menos suportável, desde a época de vossa gloriosa independência, pois que os bárbaros portugueses nada pouparam para nos tomar desgraçados, com o temor que seguíssemos os vossos passos.”
O genial Atlas of Literature, editado por Malcolm Bradbury, observa que “a rue Chateaubriand em Paris leva à rue Lord Byron e é atravessada pela rue Balzac. Assim Paris comemora a literatura...e evoca um grande período da literatura romântica.” Rejeitando a frieza do classicismo, os escritores do século 19 abriram-se para as emoções e os sentidos. Balzac (nos 95 romances da Comédia Humana) e Victor Hugo (Os Miseráveis) criaram cenas e heróis inesquecíveis. Uma nova força agitava a cena literária, a dos jornais diários, com romances em capítulos semanais, os folhetins. Balzac escrevia horas seguidas, de preferência na madrugada, sustentado pela cafeína: “O café é a bebida que desliza para o estômago e põe tudo em movimento.” Certa vez trabalhou interruptamente por 48 horas com apenas três horas de descanso. Outro que empolgou a imaginação popular foi Alexandre Dumas, com suas aventuras históricas, principalmente a saga dos Três Mosqueteiros.
Em meados do século 19 surge a Paris Boêmia, descrita no livro de Henry Murger, Cenas da Vida Boêmia (1851), que Puccini transformou na ópera La Bohème (1893). Os boêmios eram pessoas cuja ocupação principal era não ter ocupação alguma. No plano social mais rico, a vie bohème rendeu um romance de sucesso, A Dama das Camélias, de Alexandre Dumas, filho, que inspirou a ópera de Verdi La Traviata. Charles Baudelaire escandalizou com suas Flores do Mal; fazia a apologia do haxixe e era um dândi exemplar, com suas roupas extravagantes – passeava pelas ruas num terno malva puxando um cágado por uma coleira.
Nas últimas décadas do século 19, o romantismo agoniza e surgem novos movimentos – o realismo, no romance; o simbolismo e o decadentismo, na poesia. O famoso quadro de Fantin-Latour, Le Coin de Table, reflete a atmosfera da época, incluindo os poetas Verlaine e Rimbaud. Émile Zola faz literatura segundo linhas científicas e proclama; “O realismo é a nudez!” Em 1889, na comemoração do centenário da Revolução, a cidade ganha a Torre Eiffel, um monumento de ferro modelado pelo vento, segundo seu criador. A Boêmia se instala em Montmartre, ao som do can-can e sob as pinceladas dos impressionistas.
A belle époque traz os anos dourados dos salões literários, descritos minuciosamente por Marcel Proust. (Em A Cidade e as Serras, Eça de Queirós – morto em Paris em 1900 – faz também descrições magistrais da sociedade da época.) Nestes “anos de banquete”, boêmia e burguesia convivem em paz, uma se alimenta da outra.
No início do século 20, Paris é “o laboratório de ideias nas artes.” (Ezra Pound). O modernismo nasce numa noite de primavera de 1913, com a tumultuada estreia de A Sagração da Primavera, de Stravinski, pelos Ballets Russes de Diaghilev e Nijinski. Dadaístas e surrealistas levam a arte às ruas, André Breton revoluciona o romance com Nadja (1928), intercalando fotos ao texto.
Existencialismo
A crise econômica e política dos anos 1930 estraga a festa. No dia 14 de junho de 1940 as tropas alemães invadem Paris. Durante a ocupação, os intelectuais franceses mantêm uma complexa e polêmica coexistência com o ocupante e recorrem a uma linguagem cifrada e parabólica em seus romances e peças. “Ter 20 ou 25 anos em 1944 parecia uma tremenda sorte: todas as estradas estavam abertas,” escreve Simone de Beauvoir depois da libertação da cidade pelas tropas americanas. O existencialismo toma conta dos cafés e clubes noturnos de Saint Germain-des-Prés, ao som do jazz e da nova chanson, que tem em Juliette Gréco sua musa maior. Jean-Paul Sartre e Albert Camus escrevem suas obras-primas e discutem a “literatura engajada”. Sartre e Simone fundam a dirigem a revista Temps Modernes. Quando Simone publica O Segundo Sexo (1949), Camus a acusa de “querer desonrar o macho francês”. Já François Mauriac diz a um colaborador da revista: “Aprendi tudo sobre a vagina da sua patroa...” O romance de Simone que descreve o grupo existencialista chamou-se Os Mandarins, inspirado nas duas figuras chinesas que decoram o Café Des Deux Magots. (Por falta de aquecimento nos apartamentos hotéis, os autores passavam o dia escrevendo nas mesas dos cafés.)
O existencialismo foi o último movimento literário de peso na vida da cidade. A própria Paris, na onda da globalização, reduziu seu espaço humanista. Os escritores do nouveau roman se trancaram em casa com seu esteticismo cerebral. E as novas gerações se refugiaram no território totalitário dos shopping malls e das discothèques, como mostra Lolita Pille em Hell – Paris 75016 (2003). É o caso de parafrasear François Villon: “Mais ou sont les cafés d’antan?”
Veja na Gazeta do Povo, clique 



segunda-feira, 14 de julho de 2014

Há 100 anos, tinha início a Primeira Guerra Mundial, carnificina insensata, com técnicas científicas de extermínio, que causou a morte de 15 milhões de pessoas

Cartão postal de 1914 encontrado pelo autor em um sebo. Arquivo pessoal
Rapazes gaúchos na Piazza di San Marco, em Veneza, dias antes do início da Guerra: pombos-correios salvaram vidas. Foto: Arquivo pessoal

por Roberto Muggiati (especial para a Gazeta do Povo)
Cartões postais antigos sempre contam uma história. Encontrei um particularmente significativo dentro das páginas de um livro comprado num sebo. O cartão traz a foto de dois rapazes gaúchos dando comida para as pombas na Piazza di San Marco de Veneza. Eles vestem ternos leves de verão, chapéus de palha de gondoleiro e, noblesse oblige, colarinhos engomados e gravatas. Escreve um deles para a namorada:
“Meu amor. Uma recordação da Praça de S. Marcos (vê a igreja ao fundo) de suas ‘piccioni’ (pombas) de Rubens e minha. A pomba que está em minha mão, quando voou da Praça, eu observei a direção, em tua procura... Chegou? Chega agora com minhas saudades, meu amor.”
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terça-feira, 3 de junho de 2014

O cangaço segundo Graciliano Ramos





O banditismo sertanejo dos anos 1930 é dissecado pela prosa arguta do autor de Vidas Secas

por Roberto Muggiati (Especial para a Gazeta do Povo)

“Lampião nasceu há muitos anos em todos os estados do Nordeste. Não falo, está claro, no indivíduo Lampião, que não poderia nascer em muitos lugares e é pouco interessante. Pela descrição publicada vemos perfeitamente que o salteador cafuzo é um herói de arribação bastante chinfrim. Zarolho, corcunda, chamboqueiro, dá impressão má. Refiro-me ao lampionismo, e nas linhas que se seguem é conveniente que o leitor veja alusões a um homem só.”
Esse texto, publicado em 1931 na revista Novidade, de Maceió, faz parte do livro Cangaços (Record), de Graciliano Ramos, organizado pelos “gracilianólogos” Ieda Lebensztayn e Thiago Mio Salla. Reunindo textos que falam dos bandoleiros do sertão nordestino na época crucial dessa coletânea (de 1931 a 1941), o livro traz a visão indignada do escritor – mais humanista do que comunista – diante dos desmandos e desigualdades de um quadro social corrupto e cruel. Ele mesmo sofreu na carne a injustiça: a partir de março de 1936, aos 43 anos, foi encarcerado durante dez meses pela polícia política de Getúlio Vargas. A tenacidade do sertanejo em sua resistência à opressão aparece repetidas vezes na frase “apanhar do governo não é desfeita”, que se aplicaria ao próprio Graça. Ele explica o cangaço:
“O que transformou Lampião em besta-fera foi a necessidade de viver. Enquanto possuía um bocado de farinha e rapadura, trabalhou. Mas quando viu o alastrado e em redor dos bebedouros secos o gado mastigando ossos, quando já não havia no mato raiz de imbu ou caroço de mucunã, pôs o chapéu de couro, o patuá com orações da cabra preta, tomou o rifle e ganhou a capoeira. Lá está como bicho do mato montado.”
Ainda em 1931, a Novidade publicou uma entrevista com Lampião, detalhando “como o célebre cangaceiro, o herói legendário do sertão nordestino, encara certas coisas brasileiras: os direitos de propriedade, o progresso, a justiça, a família, o sertão, os coronéis, o cangaceirismo e a sua própria vida.” Logo de saída, a revista deixa claro: “Na impossibilidade de obtermos um encontro com o notável salteador, recorremos a um truque: um dos nossos redatores, antigo sócio de centros esotéricos, deitou-se, acendeu um cigarro, fechou os olhos e conseguiu, por via telepática, a seguinte entrevista.” Por aproximação estilística, Ieda Lebensztayn atribui a entrevista imaginária a Graciliano. Durante sete anos, ela pesquisou a história da revista Novidade — que teve 24 números, de 11 de abril a 26 de setembro de 1931— para sua tese de doutorado na USP. Outros escritores de talento colaboravam na revista, que era feita nos fundos de uma livraria de Maceió: o poeta Jorge Lima, o romancista José Lins do Rego, o dicionarista Aurélio Buarque de Holanda e o antropólogo Manuel Diegues Jr. (Quase todos migrariam depois para o Rio.) Mas, a verve do texto, a referência irônica ao esoterismo, a zombaria do bacharelismo e, apontam Lebensztayn “a agudez em relação à miséria absoluta e ao caráter falacioso da palavra escrita; a preceptiva poética de que é preciso conhecer o sertão para se falar dele” — tudo isso é inequivocamente de Graciliano.

Bandoleiros

O livro inclui os dois capítulos do romance Vidas Secas que falam especificamente do cangaço. Eram “dois cangaços”, mencionam os organizadores: o do passado, de caráter social, e o do presente, de motivação econômica, alinhando as datas de alguns de seus chefes: Jesuíno Brilhante (1855-1879), Antônio Silvino (1875-1944), Virgulino Ferreira da Silva, o Lampião (1898-1938), e Cristino Gomes da Silva Cleto, o Corisco (1907-1940). Destes, apenas Silvino não foi assassinado, mas preso de 1914 até 1937. Graciliano o visitou na cadeia e fez seu perfil para O Jornal, do Rio, em 1938: “Na catinga imensa, perseguido, queimado pela seca, Silvino teve sempre os modos de um grande senhor, muitas vezes mostrou-se generoso e caprichou em aparecer como uma espécie de cavaleiro andante, protetor dos pobres e das moças desencaminhadas.”
Para o Sistema, o cangaço merecia punição exemplar. Já em 1935 os volantes assombravam a opinião pública com a foto do corpo do cangaceiro Cirilo de Engrácia, comparsa de Lampião, pregado de pé numa tábua e cercado pelos homens que o mataram. A cabeça cortada teve de ser colada ao corpo para a pose de “álbum de família”. Cangaços traz a foto, com o comentário que Graciliano fez no romance Angústia: “Pensei em Cirilo de Engrácia, visto dias antes em fotografia — um cangaceiro morto, amarrado a uma árvore. Parecia vivo e era medonho. O que tinha de morto eram os pés, suspensos, com os dedos quase tocando o chão.” (Qualquer semelhança com o corpo de Vladimir Herzog pendurado nas grades da sua cela é mera coincidência...)
Mas o auge da barbárie é quando são exibidas as doze cabeças cortadas de Lampião, Maria Bonita e o resto do bando. As cenas grotescas de 1938 são evocadas pela memória de uma criança, Ricardo Ramos, filho de Graciliano, numa das epígrafes do livro: “Eu ouvia, fascinado. Passara a meninice acalentado pelas estripulias dos cangaceiros, da polícia volante, duas pestes que nos assolavam. E contei de uma noite, após a ceia, em que atraído pelos foguetes saí à calçada e vi os caminhões, as cabeças cortadas espetadas em estacas, de Lampião, Maria Bonita e mais dez outros, os soldados empunhando archotes, gritando vitoriosos, um cortejo macabro pelas ruas de Maceió. Sonhos assombrados, semanas de pesadelo.”
No artigo “Cabeças”, publicado no Diário de Notícias do Rio de Janeiro em 2 de outubro de 1938, Graciliano investe com seu humor cáustico: “Por outro lado, existem pessoas demasiado sensíveis que estremecem vendo a fotografia de cabeças fora dos corpos. Essas pessoas necessitam uma explicação. Cortar cabeças nem sempre é uma barbaridade. Cortá-las no interior da África, e sem discurso, é barbaridade, naturalmente; mas na Europa, a machado e com discurso, não é barbaridade. O discurso nos aproxima da Alemanha. Claro que ainda precisamos andar um pouco para chegar lá, mas vamos progredindo, não somos bárbaros, graças a Deus.”

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domingo, 13 de abril de 2014

Um jornalista no ventre da besta

por Roberto Muggiati (Especial para a Gazeta do Povo)
Repórter no período da ditadura, Carlos Chagas revela em seu novo livro traições na cúpula do regime militar a partir de textos e matérias suas publicadas na imprensa nacional
O jornalista é o historiador instantâneo. Muitas vezes um historiador privilegiado, “testemunha ocular da História” – como se proclamava o Repórter Esso. Carlos Chagas se fez jornalista aos 20 anos, em 1958, e assistiu de dentro às grandes transformações da política brasileira. Cobriu a campanha de Jânio Quadros, acompanhou sua breve e caótica presidência de oito meses, a tumultuada posse de Jango, com a experiência frustrada do parlamentarismo, a ascensão e queda da esquerda festiva e o avanço dos tanques sucateados que impuseram o regime de 31 de março – ou de 1º de abril, dia da mentira. O regime de exceção se fingia provisório, mas iria durar 21 longos anos.
Carlos Chagas nunca se restringiu à mera notícia. Espírito reflexivo, alma de pesquisador, apurou em todas as fontes para calçar de equilíbrio e imparcialidade seus aguçados comentários. Na introdução de seu novo livro A Ditadura Militar e os Golpes Dentro do Golpe: 1964-1969 – A História Contada por Jornais e Jornalistas, ele diz: “As primeiras versões dos acontecimentos são as que menos se afastam da realidade. Porque, depois, vêm as biografias e os depoimentos, geralmente arrumando o que se passou de acordo com interesses e preferências de seus autores. E porque, mesmo errando, e muito, a imprensa transmite à opinião pública os fatos no momento em que se verificam, ainda a melhor forma de evitar deformações posteriores.”
Valendo-se de textos seus e de matérias publicadas na imprensa nacional – e de sua rica experiência pessoal – Chagas narra a evolução (ou involução) da ditadura em seus primeiros seis anos: a sanha autofágica de militares sedentos de poder. Sempre em destaque no jornal O Globo, Chagas ganharia a proximidade do marechal Costa e Silva: “Já ‘eleito’ pelo Congresso, apesar de deter o controle das Forças Armadas, ele ainda temia a possibilidade de Castello tirar-lhe o tapete.” Para evitar confrontos, Costa empreendeu uma volta ao mundo: Europa, Ásia e Estados Unidos. O Globo incumbiu Chagas de cobrir a viagem. Com a ordem peremptória do dr. Roberto Marinho: “Não se afaste do Costa e Silva. Fique nos mesmos hotéis que ele ficar, viaje nos mesmos voos, compareça aos mesmos restaurantes.” Em Washington, Chagas viu o marechal dar uma dura no ex-embaixador, Lincoln Gordon, um dos principais articuladores do golpe de 64: “Olha aqui, Mister, o senhor não se meta no meu governo. Pode se retirar.”
O jornalista passa a confiar no político. Vê Costa e Silva assinar contrariado em dezembro de 1968 o AI-5, golpe final na democracia. Em maio de 1969, assume a Secretaria de Imprensa da Presidência da República, esperançoso no projeto de constitucionalização que o marechal empreende, apoiado no gênio jurídico do vice-presidente Pedro Aleixo. Mas a linha dura prevalece, a saúde do velho marechal baqueia, uma junta militar assume e em 30 de outubro de 1969 o general Emilio Garrastazu Médici assume a Presidência. Relata Chagas:
“Naquele fim de semana começaram os boatos. Costa e Silva estava mal ou morrera? Tratava-se de um golpe de estado? Permaneci sábado (31 de agosto) e domingo no Palácio e estive em casa para apenas algumas horas de sono. Os telefones não paravam. Jornalistas daqui e do exterior queriam a informação que apenas no domingo conseguiria confirmar e anunciar: acometido de trombose cerebral, o presidente estava temporariamente impedido de chefiar o governo. Aquela demora em declarar o óbvio, contudo, jamais me levara a supor que se tramava um dos mais execráveis golpes na crônica da República: o impedimento de um presidente para obstar a constitucionalização, mantendo-se a ditadura em sua forma mais abjeta, a de uma Junta Militar. Semanas mais tarde, sem recuperar a voz e os movimentos do lado direito, mas lúcido, percebendo tudo o que se passava à sua volta, Costa e Silva ouviria do comandante Peixoto uma das mais significativas perguntas da história recente do país: ‘O senhor queria assinar a reabertura do Congresso e a emenda constitucional acabando com o AI-5?’ As lágrimas jorrariam do rosto daquele inválido e emotivo presidente da República, já então atropelado por uma Junta Militar, que lhe usurpara o poder e com a qual jamais concordara.”
Chagas registrou aquele momento trágico, que o marcou para sempre, no livro 113 Dias de Angústia, proibido pela censura em 1970: “Eu vi o sorvete cair da mão da criança no momento exato em que ela ia levá-lo à boca. A consciência de que viver é muito perigoso tornou-se muito mais forte. Concluí que a gente tem que estar sempre resistindo. Não há trégua. No início eu tinha ilusões, achava que tudo ia melhorar. Em vinte ou trinta anos, a situação seria outra. A mágoa é comprovar que a vida da maioria do nosso povo continua muito difícil.”
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segunda-feira, 6 de janeiro de 2014

Roberto Muggiati escreve para a Gazeta do Povo: A Volta do Lobo

por Roberto Muggiati (especial para a Gazeta do Povo)

Retratada brevemente em minisséries e musicais, trajetória artística do produtor musical, compositor e jornalista Ronaldo Bôscoli é digna de um espetáculo exclusivo

Em 2009, na minissérie Maysa: Quando Fala o Coração, a figura carismática de Ronaldo Bôscoli (1928-1994) ressurgiu com força total. O ator que o interpretou, Mateus Solano, tornou-se estrela da noite para o dia e hoje é um dos maiores ibopes da tevê, encarnando o vilão Félix da novela Amor à Vida.
Agora, em Elis, a Musical, Bôscoli também faz sucesso na interpretação esmerada de Felipe Camargo. Com seu humor cáustico, o Veneno era um personagem que não admitia meias medidas: ame-o ou odeie-o. E geralmente isso acontecia com o galã de nove entre dez estrelas da MPB: elas o amavam e depois o odiavam para o resto da vida. Impiedoso com seus desafetos, trucidava a todos com seus apelidos: “compota de monstro” (Sérgio Mendes); “eminência parda da MPB” (Antônio Maria). Nem as namoradas escapavam: Maysa (“La Gorda,” “condessa de araque”), Elis (“a vesguinha”).
Mateus Solano encarnou Bôscoli em 2009, na minissérie Maysa: Quando Fala o Coração
Conheci Ronaldo Bôscoli de raspão: além dos resvalos no Beco das Garrafas nos anos 50, invadi o seu espaço em 1965, a redação da Manchete na Rua Frei Caneca. Ronaldo já reinava no Olimpo da bossa nova, mas a poeira da sua lenda ainda pairava na revista de Adolpho Bloch. Não faltavam anedotas. Um dia, Jaquito, sobrinho do dono, atende ao telefone: “Mas, minha senhora, o Ronaldo está aqui do meu lado! Doente!?...” Ronaldo arranca o fone das mãos do Jaquito e dá um esporro na Velha: “Pô, mãe, vacilou! Essa desculpa era pra amanhã...”
 Sobrinho-bisneto da lendária Chiquinha Gonzaga, sobrinho dos homens de teatro Geysa e Jardel Bôscoli, primo do ator Jardel Filho e do radialista Héber de Bôscoli, primo em segundo grau de Bibi Ferreira, se tornou cunhado de Vinicius de Moraes em 1951. Ronaldo tinha 22 anos e sua irmã, Lila, de dezenove, era obsessivamente cortejada pelo poeta, que tinha o dobro da idade e era casado. Bôscoli partiu para dar uma surra em Vinicius, mas se desmanchou ao encontrar o poeta, seu ídolo. E tudo ficou no melhor dos mundos depois que Vinicius se separou da mulher e casou com Lila. Foi Bôscoli quem jogou Tom Jobim nos braços de Vinicius para o início da maior parceria da MPB. Com o palco e a música correndo nas veias, Ronaldo Fernando Esquerdo e Bôscoli foi, sim, ser gauche na vida; mas jamais pendeu para a esquerda, ao contrário, ainda jovem ganhou o apelido de “Véio”, por causa de sua postura ranzinza e reacionária diante de tudo.
 Já no final dos anos 50, cheio do jornalismo, Ronaldo queria escrever algo menos descartável. Emplacou um pequeno sucesso, “Fim de Noite”, com Chico Feitosa. Suas pretensões de letrista o levaram a Tom Jobim, mas Vinicius – apesar de amigo e cunhado – só admitia outro parceiro para Tom, Newton Mendonça. Foi quando lhe caiu dos céus o parceiro ideal, Roberto Menescal, nove anos mais moço. Logo criaram sucessos como “O Barquinho”, “Lobo Bobo”, “Se É Tarde Me Perdoa”, “Rio”. O sucesso como letrista fez Ronaldo popular entre cantoras e atrizes.

Tática
 Em Ela É Carioca – Uma Enciclopédia de Ipanema, Ruy Castro traça seu perfil de conquistador: “Ronaldo fora um dos primeiros psicanalisados do Rio (com a Dra. Iracy Doyle) e dominava o jargão. Diante de uma mulher por quem estivesse interessado era capaz de ouvir horas de arenga ‘existencial’. Depois, solidário, falava com aparente sinceridade dos próprios problemas, um deles a síndrome do pânico que teve aos 26 anos e o fez trancar-se em casa durante um ano. Isso o tornava tão diferente dos sólidos machões da época que, ao fim da jornada, a moça estava no papo. Sua tática era simples: ‘Se me deixar falar, eu como.’ Era um profissional.”
Caíram nas garras do Lobo as atrizes Betty Faria, Joana Fomm, Mila Moreira, as cantoras Nara Leão, Maysa, Sylvinha Telles, Elis Regina, a condessa Mimi de Ouro Preto e Mônica Silveira. Nara Leão tinha apenas quinze anos quando começou a namorar Bôscoli, com 28. Em pouco tempo ele se instalou no apartamento da família da moça, na Avenida Atlântica, que se transformou num ponto de encontro da nascente bossa nova. Em 1961, Bôscoli acompanha Maysa – então com 24 anos – numa momentosa excursão a Buenos Aires, onde a conheciam como “La Contessa Cantante”. Na volta ao Brasil, todos os jornais estampam as declarações bombásticas da cantora, desmentindo os boatos de que haviam casado, mas anunciando o casamento na Europa no mês seguinte. Nara cortou Ronaldo de sua vida para sempre. Surgiu então uma garota do Sul, Elis Regina, que veio fazer o seu nome no Rio apoiada na dupla Miele e Bôscoli. Entre Ronaldo e Elis nasceu logo aquela animosidade mútua que é o prenúncio da grande paixão. Depois de uma briga horrenda, ele disse: “Se ela olhar para mim, eu falo. Se me der bom dia, eu caso.” Casaram-se em alto estilo, no final de 1967, ele de fraque, ela com vestido de noiva criado especialmente pelo padrinho, Dener, com dez metros de cauda. Aos tapas e beijos, foram quatro anos e um filho, João Marcelo, que teve um difícil começo de vida em meio à guerra conjugal. O Lobo se amansou um pouco durante o segundo casamento, em meados dos anos 70, com Heloísa de Souza Paiva, com que teve dois filhos e viveu doze anos. Depois, continuou aprontando.

Fim

Bôscoli voltou a escrever para a Manchete na virada dos anos 70/80. Como editor da revista, eu combinava a pauta toda semana com ele. A agressividade dos primeiros tempos cedera a certa amargura. Sem mais tesão para o jornalismo, ele voava no piloto automático de suas antigas glórias. Penou os últimos anos com um câncer de próstata que – não fosse o seu pavor aos médicos – seria facilmente superado. Recorreu até a poções mágicas, como o chá de cipó do Santo Daime. Mas seguiu destilando seu veneno, sem poupar nem a si mesmo. Ruy Castro descreveu: “Muito magro, envelhecido e vencido por um câncer de próstata (que operou, mas nunca tratou direito), Ronaldo Bôscoli foi visitado no hospital por seu velho amigo e parceiro Roberto Menescal. Ao entrar no quarto, Menescal ficou arrasado ao ver Ronaldo no fundo da cama com os braços abertos em cruz — um deles atado ao frasco de soro e o outro, ao de sangue. Mas a saudação de Ronaldo, com voz fraca e sumida, o desarmou: ‘Vai de branco ou vai de tinto, Menescal?’”
 Imagino esse quadro do Lobo Crucificado como o grand finale de um musical ou filme sobre Ronaldo Bôscoli. Do jeito que vai o festival das “showbios” que assola o país, logo, logo, chega a vez dele.

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sábado, 19 de outubro de 2013

Hoje, na Gazeta do Povo: Roberto Muggiati escreve sobre os 100 anos de Vinicius de Moraes


por Roberto Muggiati (para a Gazeta do Povo)
Um de nossos maiores poetas, Carlos Drummond de Andrade, afirmou: “Eu queria ter sido Vinícius de Moraes. Foi o único de nós que teve vida de poeta, que ousou viver sob o signo da paixão.” De certo modo, todos nós desejamos um dia ser Vinícius de Moraes, pela riqueza da sua vida, variedade da sua experiência e excelência do seu canto.
Marcus Vinitius da Cruz e Mello Moraes – aos nove anos vai com a irmã Lygia a um cartório no centro do Rio e muda o nome para Vinicius de Moraes – nasceu (19/10/1913) e morreu (9/7/1980) no bairro da Gávea. O círculo que se fechou no Rio abrangeu o mundo: Europa, França e Bahia – Estados Unidos, Argentina e Uruguai. O avô paterno era latinista e poeta, a avó fazia versos. O pai, funcionário público, arranhava um violino e poetava; a mãe tocava piano. A família ainda era cheia de boêmios e seresteiros. Vinicius começou a versejar cedo, aprendeu violão e formou no colégio um conjunto com três colegas, os irmãos Tapajós. Aos 25 anos, ganhou uma bolsa para estudar língua e literatura inglesa em Oxford. Começa aí sua extensa carreira amorosa. Em Oxford, casa por procuração com Beatriz Azevedo de Melo, que ficaria conhecida como Tati de Moraes. Em 1939 estoura a Segunda Guerra e ele volta ao Brasil, onde nascem os primeiros filhos: Susana (1940) e Pedro (1942). Poema enjoadinho: “Filhos... Filhos?/Melhor não tê-los!/Mas se não os temos/Como sabê-lo?” Para Tati compõe em 1941 o “Soneto de Fidelidade”: “Eu possa me dizer do amor (que tive):/Que não seja imortal, posto que é chama/Mas que seja infinito enquanto dure.” O casamento com Tati não é eterno, mas dura quase uma eternidade, para os padrões do poeta: 11 anos.
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quarta-feira, 4 de julho de 2012

Roberto Muggiati: aventura cultural na Revista Senhor

por Roberto Muggiati (para a Gazeta do Povo)
A capital do país mudou para o Planalto, mas os cariocas não tomaram conhecimento. Quando surgiu a sigla da construtora de Brasília, Novacap, eles batizaram sua cidade de Belacap, e capital da beleza nacional ela continuou sendo – e também da inteligência. A beleza se media nos badalados concursos de Miss. Já o talento intelectual desfilava na passarela de uma nova revista, lançada em março de 1959. Sediada no Rio, ela começou com o logotipo SR., a palavra SENHOR inserida verticalmente na perna do R, e o lema "Uma revista para o senhor". Seu modelo era mais a tradicional Esquire do que a Playboy, que estourava no mercado dos EUA. Senhor tratava de elegância, etiqueta, política, economia e literatura (publicando contos e crônicas), mas não deixava de ter um olho arregalado também para mulher bonita, embora não exibisse corpos nus como alcatra num açougue, A tônica da Senhor (o logotipo passou a aparecer por extenso a partir de abril de 1960) era o bom gosto e a sofisticação. Formulava um estilo de vida para o novo homem brasileiro que emergia do desenvolvimentismo de JK. Eram tempos vibrantes: bossa nova, cinema novo, sputnik, revolução cubana, beats, cool jazz — e, claro, revolução sexual. Todos esses temas encontravam espaço nas páginas da Senhor. O aquecimento do mercado garantia um respaldo publicitário para manter a Senhor nas bancas todo mês, com anúncios de moda, automóveis, eletrodomésticos, linhas aéreas. Foi uma bela aventura cultural que durou até janeiro de 1964, um total de 59 edições, que têm sua memória resgatada agora pela antologia facsimilar O Melhor da SR, ideia e coordenação de Maria Amélia Mello, organização de Ruy Castro (520 páginas, Imprensa Oficial de São Paulo). Revejo com satisfação e – por que não? – orgulho, minha assinatura no ensaio em página dupla "Os Moralistas Corruptores", que a Senhor publicou em outubro de 1962, quando eu já estava em Londres, trabalhando na BBC.
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quinta-feira, 15 de março de 2012

Na Gazeta do Povo, o jornalista Roberto Muggiati, ex-diretor da revista Manchete, escreve sobre seus 58 anos de carreira. Com direito a uma galeria de fotos pessoais e vídeo de slide show.

por Roberto Muggiati (para a Gazeta do Povo)
Na noite de 15 de março de 1954, uma segunda-feira, subi as escadas do casarão da Praça Carlos Gomes para meu primeiro dia de trabalho na Gazeta do Povo. Não tinha, como o imperador Júlio César, um vidente a me alertar “Cuidado com os idos de março!” Só depois vim a saber que “os idos de março” eram precisamente o dia 15. César não deu ouvidos ao adivinho e morreu apunhalado naquele dia exato, em 44 a.C. – 1.998 anos antes de eu atravessar o umbral daquele sobrado que me abriria as portas da profissão e da vida. Não sofreria punhaladas fatais, co­­mo as de César: mais sutis e traiçoeiras, elas exerceriam um efeito moral e emocional que, ab­­­­sorvido ao longo destes 58 anos, me ensinou a conviver melhor com a besta humana.
Toda manhã, como o leite e o pão, nosso jornal era entregue nas casas dos cidadãos e nas bancas. Em termos de tecnologia, estávamos mais próximos da prensa de Gutemberg, de 500 anos antes, do que da mídia globalizada de McLuhan, apenas dez anos à nossa frente. Ainda não tínhamos teletipo e as notícias caíam literalmente do céu: um velho senhor entalado num cubículo, a cabeça curvada por enormes fones de ouvido, recebia os últimos despachos em código Morse e os decodificava, teclando numa velha Remington. Por coincidência, o telegrafista Vergès era um kardecista convicto e tudo aquilo me parecia uma operação espírita. O tipo de texto que me chegava às mãos: “DEPUTADO DIX-HUIT ROSADO AVIONOU DF APRESENTAR PROJETO PELÁCIO TIRADENTES.” Eu tinha de colocar a notícia num português legível e era mais rápido colar o despacho do Vergès numa lauda (na verdade, uma apara de bobina, áspera como lixa e porosa como mata-borrão) e corrigir à caneta-tinteiro. Tesoura, pincel e goma arábica ainda eram ferramentas preciosas do nosso ofício. Quem tinha de decifrar todas essas charadas era um pobre revisor: com a clássica pala verde na testa, ocupava um mezanino, espécie de purgatório entre a redação (no primeiro andar) e a oficina (no térreo). Num pequeno galpão no térreo, as fotos eram transformadas em clichês por um ex-soldado russo, Konstantin Tcher­­­­no­­valoff, que lutara contra os comunistas no exército branco e parecia um cossaco diabólico em meio aos clarões do seu arco voltaico. Os clichês seguiam para a oficina, que envolvia com seus vapores de chumbo a bateria de linotipistas disposta perto das páginas – parafusadas em molduras de ferro, como nos pasquins do Velho Oeste – e da prensa plana obsoleta que imprimia nossas verdades absolutas de todo dia. Que tipo de notícias oferecia o mundo em 1954? A Guerra Fria, a Bomba H, a caça às bruxas e a segregação racial nos EUA, a derrota militar da França na Indochina, as lutas de independência anticoloniais na África – se levássemos a sério as manchetes viveríamos à beira do Apocalipse. No Brasil, 1954 foi um ano trágico. A crise política, depois do atentado da Rua Tonelero contra Carlos Lacerda, culminou com o suicídio do presidente Vargas, em 24 de agosto, no Palácio do Catete. Naquele dia, fui recebido no Colégio Estadual do Paraná pelos gritos dos colegas: “O Getúlio morreu!” Um instinto animal me fez correr para a redação da Gazeta, onde colheria os louros da minha primeira edição extra. Em contrapartida, descobri que o jornalista é es­­cravo da notícia, um ser atrelado à vida e à morte dos outros. (Anos depois, editor da Manchete, quando morreu JK, eu passei 27 horas seguidas na redação, com raros intervalos para ir ao banheiro, – os sanduíches eram mordiscados entre a definição das pautas e o fechamento dos leiautes.)

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domingo, 14 de agosto de 2011

Roberto Muggiati, direto do Muro de Berlim.... há 50 anos


Posto de observação: Muggiati no Muro de Berlim, construido em 13 de agosto de 1961. A imagem acima é de dezembro de 1961. Foto: Arquivo Pessoal

E à frente do Portão de Brandemburgo. Foto: Arquivo Pessoal
por Roberto Muggiati
Diria que 1961 foi o inverno do meu descontentamento. Tinha terminado um curso de jornalismo em Paris, viajara o verão todo, vivera o sol da meia-noite na Finlândia e o sol do meio-dia na Itália e de repente, sem dinheiro, só me restava voltar para Curitiba. Como último recurso para ficar um pouco mais na Europa, lembrei do convite do governo alemão, feito ainda em Curitiba. Reatei os contatos e, na noite de 10 de dezembro, um domingo, eu embarcava para a Alemanha no aeroporto de Orly num avião da BEA. (...)
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terça-feira, 10 de maio de 2011

Deu na Gazeta do Povo: a posse de Roberto Muggiati na Academia Paranaense de Letras

O jornalista e escritor Roberto Muggiati, ex-diretor da Manchete, assumiu ontem à noite a cadeira de número 33 na Academia Paranaense de Le­­tras (APL), em cerimônia no Pa­­ço da Liberdade – Sesc Paraná. O evento teve o formato de um sarau de jazz, com apresentações de Saul Trumpet (trompete) e Marília Giller (piano). Curitibano radicado no Rio de Janeiro (RJ), Muggiati publicou vários livros sobre jazz, rock e blues, incluindo O Que É Jazz, parte da histórica coleção Primeiros Passos.

Foto de Hugo Harada/Gazeta do Povo/Reprodução

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