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terça-feira, 5 de abril de 2022

Memórias da redação - O trio elétrico da Manchete • Por Roberto Muggiati

FUNDO INFINITO • Renato Sérgio, João Luiz de Albuquerque e Roberto Muggiati. No 2º Free Jazz Festival, em 1986, Manchete montou, no Hotel Nacional, um estúdio para fotografar em alto estilo os músicos participantes, destaques para Gerry Mulligan, Wynton Marsalis, Stanley Jordan e The Manhattan Transfer. O “Trio Elétrico” pegou carona...

Foto: Lena Muggiati


Dava prestígio trabalhar na maior revista ilustrada do país. Já salário era outra história. À falta de uma política salarial na empresa, cada jornalista tinha de lutar pelo seu num indigesto corpo-a-corpo com o dono da empresa, Adolpho Bloch. A maioria não tinha sequer acesso ao capo. Como Adolpho mandava também no conteúdo editorial das revistas, não havia na Bloch aquelas disputas de facções – as famigeradas “!panelinhas” – que ocorriam nas revistas da Abril ou nas redações de O Globo e do Jornal do Brasil. Eu não me dava conta então, foram precisos 35 anos até a falência em 2000, e a sequência do novo milênio, para chegar à percepção cristalina do quanto eu fui rico na Manchete. Rico em amizades. O ano e meio que passei na Veja em São Paulo me fez ver como a Manchete era um espaço democrático. Na redação no oitavo andar do prédio na Marginal do Tietê, eu ocupava um pequeno escritório fechado com vista para o rio lamacento, totalmente apartado da minha equipe de seis subeditores e doze repórteres, que se comprimiam nas “baias” – cubículos separados por divisórias de Eucatex de dois metros de altura. Já a redação da Manchete, também no oitavo andar, era aquele salão aberto com a fachada de vidro voltada para a entrada da baía de Guanabara, com o Pão de Açúcar de sentinela à direita, o azul do céu e do mar – como escreveu nosso repórter-letrista, “é sol, é sal, é sul.”  A redação ocupava 80% da metade fronteira do andar, entre os escritórios do Adolpho e do Jaquito em cada extremidade, separados de nós apenas por uma divisória de vidro. 

Todo mundo passava por aquele bordel. Os patrões vinham bisbilhotar nosso trabalho e dar palpites. Coleguinhas das revistas femininas vinham fofocar e jogar conversa fora. Uma delas, a simpática Laura Taves, sentou um dia na Ponte Aérea ao lado de um dos donos da Abril, meses depois se tornava a nova Sra. Roberto Civita. Como presente de casamento, ganhou a editora de temas feministas Rosa dos Tempos, com assessoria editorial de Rose Marie Muraro, que vivia na redação da Manchete em conchavos feministas com a Heloneida Studart. Justino Martins imperava na grande mesa de edição em L, sua sala de visitas. Recebia preferencialmente mulheres. As jovens amigas Lúcia Sweet e Fernand Bruni eram um colírio para os olhos. A baiana Raimunda Nonata do Sacramento, mais conhecida como Luana, nascida no Curuzu, em Salvador, primeira manequim negra brasileira, sucesso chez Paco Rabanne, Dior e Chanel, casou-se com o Conde de Noailles, uma das cepas mais nobres da aristocracia francesa. Regina Rosemburgo Lecléry visitou Justino na véspera do seu embarque para Paris no avião da Varig que se incendiou a poucos quilômetros do aeroporto de Orly em 1973. O cineasta Pierre Kast, o escritor Jean Genet e o “Clint Eastwood dos pobres”, Anthony Stephen, filho do Barão de Tefé,  também batiam o ponto na redação. Contei aqui outro dia do Nélson Rodrigues, que entrava saudando Adolpho como “o Cecil Bê De Maille (sic) do jornalismo!” Jô Soares, sem dizer palavra, pegava o Adolpho e saía valsando com ele pelo piso de tábuas corridas de madeira nobre. Um dia, Magalhães Jr. me apresentou a Agripino Grieco. Olhando para minha testa larga que já antecipava a calvície, o grande aforista disparou: “Que belo salão de baile para as ideias!” Vinha também, com uma assiduidade enervante, o Francisco Augusto Nascimento – que faturou milhões com o craque Grão de Bico nas pistas de turfe americanas – arrancar deste escriba um nome esperto para batizar um novo cavalo do seu haras em Itaipava. Depois de nomes literários como Jezebel, Iago, Rosencrantz e Suetônio, chutei um Cavalo de Crista. Não sei se o Chico percebeu a alusão à doença venérea; acabou chamando o potro de Capitão Jair, menção a um obscuro deputado iniciante. O pobre do animal jamais chegou entre os dez primeiros sequer.

Em 1975 assumi a direção editorial da Manchete no lugar do Justino. João Luiz de Albuquerque era meu chefe de reportagem, assistido pela dupla dinâmica João Resende e Suzana Tebet. Os Bloch inventaram uma reunião de pauta semanal com o pleno ampliado: a participação obrigatória dos editores de todas as revistas da casa. Cada qual tentando vender o seu peixe à custa da Manchete. O editor de Manchete Rural propunha matéria sobre uma nova vacina contra a febre aftosa, e por aí vai. João Luiz secretariava. Diplomaticamente, eu nunca rejeitava explicitamente uma sugestão: “Vamos ficar de olho.” João Luiz anotava. Eram tantas as sugestões que ficavam de olho que ele bolou um carimbo, aquele olho-lâmpada dramático que ocupa o ponto focal da tela de Picasso “Guernica”. Acabei adotando esse carimbo como meu ex-libris. “Fique de olho”, o lema perfeito para um jornalista. 

Em nossos telefonemas, João Luiz e eu adotamos espontaneamente um cacoete. Um se apresentava com o nome esdrúxulo de um músico de jazz. O outro respondia à altura, fonética e jazzisticamente.

– Olá Ike Quebec!

¬ – Tudo bem, Illinois Jacquet?  

[Bedroom tenors > saxofonistas de alcova] 

– E aí, John Robichaux? 

– Tudo em riba, Alphonse Picou.

[Músicos Creoles de Nova Orleãs.]

– Alô, Pony Poindexter!

– Beleza, Conte Candoli!

[Músicos da banda de Stan Kenton.]        

–  Como vai você, Phil Urso?

–  Levando, levando, meu caro Vido Musso.

[Saxofonistas tenores.]

Já com Renato Sérgio, nosso brilhante redator de assuntos culturais, a troca telefônica era minimalista. Mantínhamos uma espécie de shibboleth, uma senha binária, calcada no grito de guerra da Banda de Ipanema.

– Yolhesman!

– Crisbeles!

Ou, na contramão:

– Crisbeles!

– Yolhesman!

O lema da Banda de Ipanema não significava absolutamente nada, foi tirado por um de seus fundadores da pregação de um maluco que vendia bíblias na Central do Brasil. Na verdade, ficou sendo, naqueles tempos sombrios da ditadura militar (a Banda foi fundada em 1964 e saiu pela primeira vez no Carnaval de 1965), uma versão tropical do grito do anjo do Apocalipse.

Enjoado de tudo isso que anda por aí, Renato Sérgio nos deixou há dez anos – o velho e bom paulistano que, segundo José Esmeraldo Gonçalves tinha “um certo e saboroso jeito carioca de ver a vida”.

Depois de uma longa e tenebrosa pandemia, que ainda perdura – nós dois de máscara na livraria Argumento no lançamento do livro de Márcio Pinheiro sobre o Pasquim – reencontrei o João Luiz, protegido por suas guarda-costas de estima, as filhas Gabriela e Cristina. Trocamos mil e uma figurinhas dos tempos da Bloch e ele me contou histórias incríveis dos passeios com Adolpho Bloch no seu bugre. “E eu quero andar na sua baratinha,” disse Adolpho ao ver o buggy do João Luiz diante do prédio do Russell. Mas isso quem pode contar com a devida galhardia é só o próprio João Luiz. Vamos lá, ao teclado, Ferdinand Joseph La Menthe!...

segunda-feira, 4 de maio de 2020

Trinta e cinco anos sem Narceu • Por Roberto Muggiati

Domingo, cinco de julho de 1964: Muggiati, Sabino e Narceu na Catedral de Rouen, voltando para Londres
de uma visita a Vinícius de Moraes em Paris. Foto: Arquivo Pessoal 

Sexta-feira, 3 de maio de 1985. Chego cedo à redação, ainda vazia, vai ser um dia morno, poucas matérias serão fechadas, o maior número de páginas fica para o sufoco do fechamento final da revista na segunda-feira. Minutos depois chega o Alberto (de Carvalho), a redação está na penumbra, poucas luzes foram acesas. Numa voz soturna, para dentro, diz: “Nasceu, morreu.” Perturbado, sem querer entender o que ouvi, protesto: “Pô, Alberto! Quem nasceu e morreu?” Alberto não queria também dar a notícia, coitado. Mas disse, firme e pausadamente: “Muggiati, o Narceu morreu esta madrugada.”

De infarto, aos 52 anos.

Narceu de Almeida Filho: minha história com ele começa 22 anos antes, em Londres, 1963, na BBC. Jornalista conhece um mundo de gente, mas nunca tem tempo e oportunidade para fazer amigos. Narceu foi um dos meus maiores amigos, contados na ponta dos dedos de uma mão. Como Programme Assistant do Serviço Brasileiro da BBC, além de traduzir, escrever e ler textos das transmissões para o Brasil, eu contratava matérias dos raros free lancers que apareciam por lá. (Para se ter uma ideia, nas eleições de 1962 compareceram ao consulado do Brasil em Londres pouco mais de 60 eleitores, era o número de nossa diminuta colônia na capital britânica então. Nada a ver com o contingente de brasileiros da Swinging London de 1966 e menos ainda com a patuleia de jovens que acorreu em massa à London London de Caetano e Gil no início dos anos 70).

Lembro a colaboração inicial do Narceu, foi uma brilhante resenha do filme estreado naquele ano de 1963, Tom Jones – tanto o filme como o diretor, Tony Richardson, ganharam o Oscar.
Narceu tinha 30 anos, eu 25. Independente, ele tinha um carro, daqueles primeiros modelos compactos britânicos – um Morris Mini Minor. Frequentávamos o clube de jazz Ronnie Scott’s, ainda em seu endereço original no 39 da Gerrard Street, no Soho, uma arapuca à qual você descia  por uma escada estreita num ângulo quase de 90 graus, sem janelas, um incêndio ali e em poucos minutos virávamos cinzas. Mas milagres aconteciam, principalmente em Londres, como reza a letra de Ira Gershwin em A Foggy Day, “The age of miracles hadn’t passed...” O próprio Ronnie Scott – uma mistura redundante de judeu e escocês – cuidava da casa, dos ingressos (você pagava uma libra anual e se tornava sócio do “clube”) à cozinha, da apresentação dos shows, com seu humor esperto, à própria participação como músico, tocava um sax tenor profissional e honesto. O consumo etílico na Inglaterra era subordinado a um emaranhado de leis (na maioria de fundo moralista), depois da meia-noite, para beber, você tinha de encomendar alguma comida. Lá pelas duas da madrugada você saía com uma meia dúzia de Scotches na cabeça e deixava sobre a mesa pilhas de hambúrgueres e sanduiches intocados. Numa daquelas noites, ao sair, não vimos nenhum traço do nosso Mini Minor. O carrinho tinha sido rebocado por estacionamento ilegal. Até nessas coisas os ingleses são organizados, havia uma placa no local indicando onde resgatar o veículo, Sem problemas, uma hora depois estávamos rodando de novo pelas ruas desertas de Londres. Eu morava em Chelsea, à beira do Tâmisa; o Narceu num lugar de nome poético, mais para o norte, Swiss Cottage.
A mobilidade do carro nos permitia outros programas culturais. Num sábado de agosto fomos ao Festival de Teatro de Chichester ver uma versão do Tio Vânia dirigida e interpretada por Sir Laurence Olivier, com sua mulher Joan Plowright e Sir Michael Redgrave no papel de Tio Vânia.

Nessa época eu estava encalacrado (a palavra obsoleta diz tudo) num caso amoroso sem futuro, mas com um presente intenso. A jovem em questão era casada com um diplomata da nossa embaixada. Eu a visitava uma vez por semana, nas tardes de segunda ou terça, meus dias de folga na BBC, por trabalhar nas transmissões diretas da meia-noite à uma da manhã aos sábados e domingos. Tínhamos tudo a ver, ela morava em Chelsea, perto de mim, os filhinhos – um menino, uma menina – dormiam no andar de cima, na sala de estar tomávamos chá e discutíamos Proust, ou o que fosse – é sempre Proust nestas horas – uma madeleine e nada mais, para minha imensa frustração. Às vezes, lá pelas seis horas, o marido chegava cansado do trabalho, me cumprimentava cordialmente e subia para o quarto. Tudo muito civilizado, very British... O sapiente e paciente Narceu não só ouvia as lamúrias do pierrô apaixonado como, de certa forma, participava indiretamente daquela louca aventura amorosa.

Em 1964 entra em cena Fernando Sabino, nomeado adido cultural do Brasil em Londres poucos meses antes do golpe militar. Em carta de 13 de abril de 1964 a Otto Lara Resende, Sabino escreve: “O meu amigo aqui se chama Narceu de Almeida (também não é mineiro, mas parece) – um jornalista daí que trabalhou no Estado de S. Paulo, passou pela Thompson, etc e veio dar com os costados em Londres, Ótimo sujeito, escritor, 30 anos, goiano, excelente companheiro.” (Cartas na mesa, Record, 2002). Baterista amador e grande aficionado de jazz, Sabino passou a nos acompanhar nos programas noturnos – Londres era passagem obrigatória dos maiores músicos, lembro-me de ter ouvido com Sabino e Narceu os tenores de Stan Getz e Sonny Rollins, o piano de Bill Evans. Na manhã de quarta-feira, 1º de julho de 1964, na Mini Minor do Narceu, pegamos a estrada rumo a Paris, Sabino ia visitar Vinícius de Moraes, que trabalhava no consulado. Narceu e eu desfrutamos também da companhia do poetinha e de seus parceiros da hora, Baden Powell e a bela Odete Lara, com quem Vinicius gravou um LP fabuloso para a Elenco: doze composições de Baden e Vinícius com arranjo e regência de Moacir Santos e produção de Aloysio de Oliveira,

Sábado de Aleluia, 17 de abril de 1965, em Cambridge. Narceu entre Lina Muggiati e Celina Luz. Foto; Arquivo Pessoal

Essa viagem, mal sabia eu, seria responsável por meu primeiro casamento. Conheci Lina, casada com um dos maiores doleiros do Rio, Daniel Tolipan, e amante de um arquiteto francês, Jerôme. Francês tem amante, mas não larga a família jamais de la vie. Dentro de seis meses Lina estaria morando comigo em Londres – uma tremenda responsabilidade substituir marido e amante. Narceu e eu nos afastamos por um período, ele havia iniciado, via Sabino, negociações com Adolpho Bloch para assumir a chefia do principal escritório europeu da Manchete, a cidade escolhida foi Paris por ter voo direto para o Rio. Antes disso, o Narceu teve uma estranha incumbência. Ia com seu carrinho a Aylesbury, onde o jornalista Assis Chateaubriand, ex-embaixador do Brasil na Inglaterra, estava internado num centro neurológico desde que sofrera uma trombose em 1960. Embora paraplégico, Chatô conseguia, com a ajuda de fiações amarradas aos dedos, como aquelas de marionetes, teclar a sua máquina de escrever, a fim de mandar o artigo diário para seus jornais. Narceu pegava aquelas páginas empasteladas, fazia o devido “copidespe” (como dizia o Adolpho) e despachava o artigo limpo para o Brasil. Fazia todo dia a viagem de 60 quilômetros a Aylesbury – 120 km ida-e-volta.

Na Páscoa de 1965, Narceu nos visitou no apartamento de Embankment Gardens com a Celina Luz, um jornalista curitibana velha amiga, filha de pastor que lia Henry Miller às escondidas. No carrinho do Narceu, Celina, Lina e eu visitamos Cambridge no dia 17 de abril, sábado de Aleluia. E eu não conhecia a Universidade de Cambridge – minha alma mater via Cultura Inglesa – excepcionalmente nevou naquele dia. Pouco depois, Lina começou a mostrar a que viera. Me fez desfazer a prorrogação de contrato por dois anos que tinha assinado com a BBC. Invariavelmente, quem continuava lá, continuava para sempre. Hoje eu seria um plácido pensionista do Brexit, em vez de suportar as agruras de aposentado do INSS por aqui, jornalista com 66 anos de carreira sem trabalho. Mas Lina ambicionava, no mínimo, ser embaixatriz, e decidiu que eu voltaria para tentar o Itamaraty. É um exame que não se faz em cima da hora. Fiz e não passei. Tínhamos alugado a casa-ateliê do pintor Loio Pérsio em Santa Teresa, fomos expulsos por uma praga de camundongos e tivemos de nos refugiar no pequeno apartamento do sogro no Leblon. Foi quando reencontrei o Narceu, que viera ao Rio por conta do I Festival Internacional de Cinema, comemorando os 400 anos da cidade.

Honor Blackman no Baile das Celebridades, em 1965, no Rio. A atriz participava do
festival internacional de cinema que homenageou o 4° Centenário da Cidade Maravilhosa.
Foto Manchete/Reprodução

E no filme Goldfinger contracenando com Sean Connery. Foto: Divulgação

Narceu de Almeida teve um caso com Honor Blackman. Ele entrevistou a atriz
para a Manchete. No texto uma revelação: a bondgirl adiou a volta a Londres
por três semanas para "conhecer melhor o Rio". 

Um pouco sobre a personalidade do meu amigo goiano-mineiro. O Narceu tinha uma enorme dificuldade de falar. Às vezes abria a boca e não saía nada. Nem a leitura labial ajudava, seus lábios quase não se mexiam. Pois não é que no voo de Londres para o Rio o Narceu veio sentado ao lado da exuberante Honor Blackman? Faixa preta de caratê, a moça brilhava no terceiro filme da série, 007 contra Goldfinger, fazendo a Bond Girl com o sugestivo nome de Pussy Galore – algo como Xota a Granel...  Ninguém sabe o que se passou na meia-luz da travessia transatlântica, o fato é que a Honor Blackman desceu as escadas no Galeão com um namorado brasileiro a tiracolo – nosso bom Narceu. Podem imaginar o frisson que atacou os bravos rapazes da imprensa? No ano anterior tivemos de recorrer a um playboy marroquino metido a brasileiro, Bob Zagoury, para conquistar Brigitte Bardot em Búzios...

Terminado o festival, o Narceu, posto em sossego, me procurou. Depois da reprovação no Itamaraty, fui recomendado para o Rogério Marinho no Globo, que me encaminhou ao chefe de reportagem Alves Pinheiro, que me botou imediatamente a trabalhar. Fui ao Hotel Glória cobrir um congresso internacional da Interpol. O transporte do Globo era complicado, tinha de telefonar de um orelhão para uma central de rádio, enfim esperei mais de uma hora pelo carro que me levou à redação da Rua Irineu Marinho que, desde o começo, me pareceu sinistra e cheia de bad vibes... Bati a matéria na máquina – como dizia um coleguinha nosso, para ele escrever não passava de uma atividade física – botei o texto na mesa do Alves Pinheiro, eu tinha ido fazer uma boquinha na lanchonete da esquina, e nunca mais voltei a pisar na redação de O Globo. Narceu caiu do céu. Lina e eu o recebemos com uma garrafa de bom Scotch no apartamento da Rita Ludolf, em cima da farmácia Piauí – os sogros estavam na casa da ilha de Paquetá. Narceu me animou a procurar a Manchete. “Você vai encontrar o Ricardo Gontijo e o Zuenir.” Ricardo era irmão do Antônio Fernando, meu colega de BBC que morreu afogado em Málaga. Zuenir Ventura fora meu colega de bolsa no Centre de Formation des Journalistes em Paris, em 1960.

O quadro de Harry Elsas no restaurante da Frei Caneca:
dramaticidade expressionista inibia apetites. 
Dois ou três dias depois adentrei o prédio de Frei Caneca, você tinha de caminhar meio quilômetro entre máquinas sucateadas até um elevador de carga que servia o prédio de oito andares nos fundos, onde ficavam as redações, a administração e o restaurante. No oitavo andar, o restaurante tinha uma peculiaridade: uma parede enorme coberta por um mural do Harry Elsas, um pintor do século 20 que se imaginava Hyeronymus Bosch, o que estava longe de ser. A comida de Frei Caneca era ótima, sempre teve a fama de ser melhor do que a do Russell, mas o painel do Harry Elsas era um grande inibidor do apetite.

As coisas aconteciam rápido demais na Bloch, Zuenir não estava mais lá, tinha brigado com o Adolpho e se mandado. Também rapidamente o Jaquito e o Arnaldo Niskier foram com a minha cara. “Veio da BBC? Que bacana! Pode começar depois do feriado como repórter especial?” Dito e feito. O 15 de novembro caiu na segunda, terça-feira eu estava lá para iniciar o que jamais imaginaria seriam 35 anos de Manchete, um bom pedaço – o melhor talvez – da minha vida.

Terça-feira, 17 de dezembro de 1972: na redação da Manchete,  Narceu, 39 anos, com o jovem Ruy Castro, 24 anos.
Foto: Arquivo Pessoal

Narceu chefiava a sucursal de Paris com seu fiel escudeiro, o fotógrafo Alécio de Andrade, mestre da Leica que entraria para o seleto clube da Magnum. Eram os anos da contracultura, a Revolução Cultural anteciparia Maio de 68. Para Adolpho Bloch Paris era luxo puro, adorava ser recebido com tapete vermelho nos melhores restaurantes, segundo o Protocolo Sylvio Silveira que seria consagrado a seguir. Horas antes de Adolpho embarcar para o Rio, Sylvio o levava à melhor casa de queijos de Paris e forrava bolsas térmicas de queijos de todas as variedades, Adolpho voltava direto do aeroporto para a Manchete, convocava seus favoritos e fazia a distribuição. Além de queijos, eu recebia patês e às vezes um potinho de caviar. Não fazia parte do figurino do Adolpho e da Lucy (Lucy Mendes foi Miss Rio Grande) encarar o Narceu e o Alécio num bistrô enfumaçado da rive gauche com duas garotas punk de boina coroada pela estrela vermelha. Adolpho ficou com aquilo atravessado na garganta. Um dia, encontrou o pretexto que procurava, na mesa de edição do Justino: fotos da namorada do Narceu seminua distribuídas por uma agência internacional. Já com a decisão tomada, Adolpho convocou o Sabino e a mim – nunca me dirigira a palavra até então – para sermos seus avalistas. “Essa mulher está desgraçando a vida do Narceu! Ele precisa voltar para o Brasil já, senão estará perdido.” Almoçando com Adolpho no restaurante de Frei Caneca, sob os olhares sorumbáticos dos judeus do Harry Elsas, nada tínhamos a dizer, Sabino e eu. Nosso silêncio estupefato selou o destino do Narceu. Logo depois ele voltava ao Rio para trabalhar como redator da Manchete.

Um corte rápido para 1970. Editor de EleEla, Carlos Heitor incumbiu a repórter Ana Maria de Abreu de entrevistar jornalistas conhecidos sobre seu filme de amor preferido. Ana Maria procurou o Narceu. Sua love story favorita só podia ser, como ele, romântica e trágica: Acossado/À bout de souffle, de Godard, em que a mocinha (na verdade bandida) entrega à polícia o bandido (na verdade mocinho), que morre com uma bala nas costas. Da entrevista ao casamento, Narceu e Ana Maria viveram felizes quinze anos (com três filhos) até a morte prematura dele.

Depois do AI-5, que proibiu qualquer expressão política, intelectuais e jornalistas que faziam a resistência contra a ditadura militar optaram pelo discurso cultural, Ou melhor, contracultural. Do meu panfletário Mao e a China de 1968, parti para o Rock: o grito e o mito/A música pop como forma de comunicação e contracultura, em 1973. Narceu entrou na onda de maneira mais radical. Amigo dos jornalistas Luiz Carlos Maciel e Luiz Carlos Cabral, que também trabalhavam na Bloch, acabou partindo com eles – e a musa de ambos, a atriz Maria Claudia, casada com Maciel – para uma temporada de vida alternativa na Região dos Lagos. Jaquito, em suas rondas pelas redações, costumava zoar: “O Narceu está jogando pingue-pongue contra o vento!” Quando Narceu voltou para garantir o leite das crianças – iniciara o alfabeto, teve os filhos André e Bruno e Ana Maria estava grávida do César quando ele morreu – Jaquito o colocou punitivamente no regime de frila. “Agora ele está correndo atrás, o Capelinha. Cobra como uma corrida do táxi, de preferência em bandeira 2...” Não faltava humor ao Jaquito, afinal ele cresceu entre os Karamabloch e as víboras das redações. Capelinha era a marca dos taxímetros da época.

Narceu tinha uma qualidade que nem todo jornalista, por mais brilhante e intelectualmente equipado, era capaz de ter: sabia fazer amigos. Assim, ele publicou em O Globo a última entrevista de Vinicius de Moraes e, no EleEla, uma entrevista histórica com Os Quatro Mineiros do Apocalipse: Fernando Sabino, Hélio Pellegrino, Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos.

Na madrugada da sexta-feira, 3 de maio, Ana Maria ligou aflita para o Irineu Guimarães. Ele e o Cícero Sandroni, que morava perto, no Cosme Velho, acorreram (Narceu morava nas proximidades da estação do trenzinho do Corcovado), mas o amigo já tinha morrido de infarto. Partiu silencioso, discreto como sempre. Numa atmosfera que me recorda a de um dos mais belos poemas do século 20, de Dylan Thomas, ele mesmo morto muito cedo, aos 39 anos. Com a palavra Dylan Thomas e o grande tradutor, Ivan Junqueira

NÃO ENTRES NESSA NOITE ACOLHEDORA COM DOÇURA

                    Dylan Thomas • Tradução: Ivan Junqueira

Não entres nessa noite acolhedora com doçura,
Pois a velhice deveria arder e delirar ao fim do dia;
Odeia, odeia a luz cujo esplendor já não fulgura.

Embora os sábios, ao morrer, saibam que a treva
                                               [ lhes perdura,
Porque suas palavras não garfaram a centelha
                                               [ esguia,
Eles não entram nessa noite acolhedora com doçura.

Os bons que, após o último aceno, choram pela
                                               [ alvura
Com que seus frágeis atos bailariam numa verde
                                               [ baía
Odeiam, odeiam a luz cujo esplendor já não fulgura.

Os loucos que abraçaram e louvaram o sol na etérea
                                               [ altura
E aprendem, tarde demais, como o afligiram em sua
                                               [ travessia
Não entram nessa noite acolhedora com doçura.

Os graves, em seu fim, ao ver com um olhar que os
                                              [ transfigura
Quanto a retina cega, qual fugaz meteoro, se
                                              [ alegraria,
Odeiam, odeiam a luz cujo esplendor já não fulgura.

E a ti, meu pai, te imploro agora, lá na cúpula
                                              [ obscura,
Que me abençoes e maldigas com a tua lágrima
                                              [ bravia.
Não entres nessa noite acolhedora com doçura,
Odeia, odeia a luz cujo esplendor já não fulgura.


DO NOT GO GENTLE INTO
THAT GOOD NIGHT

Do not go gentle into that good night,
Old age should burn and rave at close of day;
Rage, rage against the dying of the light.

Though wise men at their end know dark is right,
Because their words had forked no lightning they
Do not go gentle into that good night.

Good men, the last wave by, crying how bright
Their frail deeds might have danced in a green bay,
Rage, rage against the dying of the light.

Wild men who caught and sang the sun in flight,
And learn, too late, they grieved it on its way,
Do not go gentle into that good night.

Grave men, near death, who see with blinding sight
Blind eyes could blaze like meteors and be gay,
Rage, rage against the dying of the light.

And you, my father, there on the sad height,
Curse, bless, me now with your fierce tears, I pray.
Do not go gentle into that good night.
Rage, rage against the dying of the light.

PS – Opções no YouTube: o poema recitado pelo autor, Dylan Thomas, ou pelos atores Anthony Hopkins ou Richard Burton. Recomendo o Burton.

sexta-feira, 24 de março de 2017

Rio, 1966: a ditadura light e a esquerda festiva

Foto de Camilo Calazans/AJB/Divulgação/Geração Paissandu

por Roberto Muggiati

Esmeraldo e eu empreendemos uma incansável e obsessiva caçada à memória fotográfica da Manchete. Mais precisamente, procurando levantar a quantidade de profissionais que trabalharam nas revistas da Bloch. Outro dia me veio à lembrança a paraguaia Zulema Rida, casada atualmente com o importante designer Karlheinz Bergmüller. De um casamento anterior, Zulema teve um filha Julia, que se casou em 1980 com o cônsul da Alemanha no Rio, Michael Geier, amigo dos jornalistas de esquerda cariocas – Ziraldo cantou boleros na festa do seu casamento.

Mas, voltando à Zulema, de breve passagem pela fotografia na Bloch. Em 1966, ela foi escalada para fotografar uma reportagem da Fatos&Fotos sobre a esquerda festiva carioca. Ora, as grandes cagadas na Bloch sempre aconteciam com a pobrezinha da F&F. . .

Foto de Luiz Carlos David/AJB/Divulgação/Geração Paissandu

Introduzo na história um personagem-chave que vinha sendo monitorado pessoalmente pelo Jaquito. A embaixada americana continuava funcionando no Rio de Janeiro – só pensaria em se mudar para Brasília depois do sequestro do embaixador em 1969. E fazia um trabalho importante de manutenção no pós-golpe militar de 1964. O assessor de imprensa da embaixada no Rio era Jack Wyant, que atuava também como porta-voz junto à imprensa, televisão e rádio. Curiosamente, Wyant nasceu em São Paulo, em 1929, de pais americanos que faziam trabalho missionário no Brasil. Depois de se formar em jornalismo em Seattle – e de servir o exército americano entre 1951 e 1953, Wyant entrou para a USIA (United States Information Agency). Para a Bloch era importante ter um bom relacionamento com a embaixada dos EUA e Pedro Jack (Kapeller) e Jack (Wyant) logo ficaram amigos inseparáveis. Coincidiam até nas datas de nascimento: Jack era de 7 de outubro, Jaquito de 10 de outubro.

Livro Geração Paissandu,
do saudoso Rogério Durst:
biografia de um point. 
Um local obrigatório para se fotografar a esquerda festiva carioca era o Cine Paissandu e o seu entorno boêmio. Zulema fez um belo ensaio em preto e branco em um bar de calçada ao lado do Paissandu. O editor abriu a reportagem com uma foto em página dupla em que aparecia com destaque como intelectual da festiva – a legenda infeliz enfatizava – Mr. Jack Wyant, da American Embassy.

Quando Fatos&Fotos foi às bancas, veio logo o telefonema fatídico da embaixada e a chapa esquentou em Frei Caneca, onde ficavam as redações da Bloch. A coisa ficou preta para os envolvidos na reportagem, a responsabilidade maior era do repórter e não do fotógrafo, mas sobrou também para a paraguaia – talvez por isso mesmo ela não tenha ficado muito tempo na Manchete. Quanto a Jack Wyant, fiquei sabendo que ele morreu há poucas semanas, aos 87 anos, no dia de São Sebastião do Rio de Janeiro.



sexta-feira, 9 de dezembro de 2016

O “botão da tosse” da BBC - 50 anos antes do Brexit, um típico dilema britânico

Floriano Parreira, Roberto Muggiati e Nemércio Nogueira Santos no Serviço Brasileiro
da BBC em 1964: tossir ou não tossir, eis a questão. Foto Arquivo Pessoal

Por ROBERTO MUGGIATI

Em agosto de 1962, mudei-me de Curitiba para Londres com um contrato de três anos para trabalhar no Serviço Brasileiro da British Broadcasting Corporation. A Bush House, que abrigava os Serviços Externos da BBC, era um imponente bloco de edifícios plantado entre a região dos teatros e a região dos jornais — logo depois de Bush House começava a lendária Fleet Street.

O portal da Bush House dando para Aldwych. Era ali
a entrada do  Serviço Brasileiro, que ficava no primeiro
andar. A janela do primeiro andar à direita de quem olha, 
acima do semáforo, era onde ficava a nossa "redação".



O prédio, que ocupava o imenso quarteirão em forma de semicírculo entre o Aldwych e o Strand, era uma verdadeira Torre de Babel, com transmissões nas mais inusitadas línguas do mundo, e um labirinto de salas e corredores abrangendo os serviços estrangeiros, os estúdios de gravação, edição e transmissão, e o setor administrativo. Tinha ainda uma barbearia bem britânica e a cantina – na verdade um imenso refeitório self-service com um sofisticado cardápio que, na temporada de caça, dava-se ao luxo de servir “grouse”, aquele galináceo parrudinho da Escócia.

Na altura do primeiro andar, os prédios eram ligados por passarelas cobertas (lembravam-me a Ponte dos Suspiros de Veneza), pelas quais podíamos circular sem tomar chuva em nossas andanças de um estúdio para outro.

No Serviço Brasileiro, os redatores contratados – chamados de Programme Assistants – iam da casa dos vinte à dos quarenta, selecionados por concurso, e vinham das mais diversas regiões do país.

A BBC não fazia questão daquela voz empostada e possante típica dos radialistas pátrios. Bastava você não gaguejar e falar com naturalidade. Havia veteranos, alguns remanescentes do que chamávamos a “Legião Estrangeira do Éter” — tinham passado pela Voz da América (EUA), pela Rádio Canadá, pelas estatais da França, Holanda, Suécia, Itália e Alemanha. (Conheci dois brasileiros que, embora não tendo estado na BBC, trabalharam alguns anos no serviço brasileiro da Rádio do Cairo, experiência que descreviam como literalmente tórrida.)

Com a atriz Tonia Carrero, que 
visitava Londres. A BBC 
fazia questão de pagar 5 libras 
(aquela nota azul da Rainha) para 
cada entrevistado.
Surpreendi Mariinha molhando 
sua mão 
enluvada com um "fiver".
Foto: Reprodução O Globo
Havia também os freelancers, como Carlos Cotrim, galã de bigodinho dos filmes da Atlântida, que se parecia mais com Clark Gable do que o próprio Clark Gable; o ator de teatro Luís Tito, figura bizarra e engraçada; e Lucy Ward, uma velha senhora do Amazonas que se casou com um inglês do Bank of London and South America e foi morar em Londres para o resto da vida. Os preconceituosos vinham logo com a piadinha de que Lucy tinha “pegado o cipó das onze” para a Europa, mas a velhinha viúva — toda retorcida pela artrose, sem reclamar nunca das dores terríveis, gabando-se das “obsceeene phone-calls” que recebia — era uma criatura adorável, daquelas comadres dos romances de Jane Austen, sabendo tudo o que acontecia com a diminuta colônia brasileira em Londres (62 compareceram ao consulado de Londres em 1962 para justificar o voto) e jamais sonegando informação.

Para os mais jovens era uma verdadeira mãe, com todo tipo de conselhos, desde como tirar manchas de roupas a receitar remédios e, eventualmente, até emprestando um dinheirinho.

Solteiro, logo estabeleci um esquema de trabalho muito conveniente para mim: trabalhava no horário integral (ten to six) às quartas, quintas e sextas. Aos sábados e domingos, fazia a transmissão ao vivo, ouvida no Brasil das 20 às 21, que começava em Londres com as batidas da meia-noite pelo Big Ben.

Dois dos meus quadros favoritos de Londres; "Os jogadores de cartas"
(1892-95), do Paul Cézanne (Courtauld Institute)  e...



"O balanço" (1767), de Jean-Honoré Fragonard (Wallace Collection)


Aos sábados, como o transporte público em Londres não funcionava depois da meia-noite, a BBC nos reservava um tratamento de luxo: os carrões dos altos executivos nos aguardavam no portão de saída de Bush House, um motorista de libré nos abria elegantemente a porta e nos conduzia até em casa.
Com isso, eu tinha inteiramente livres as segundas e terças, para fazer da cidade de Londres o meu playground. Chás no Fortnum & Mason’s ou na sala da Twinings, que ficava perto da BBC, museus particulares como a Wallace Collection, com seu fabuloso acervo de pintura galante francesa (Watteu, Fragonrard, Boucher); ou visitar o Cortauld Institute só para apreciar Les Jouers de Cartes de Cézanne. Ou um cineminha no National Film Theatre, a cinemateca londrina, com sua sala maravilhosa debaixo da Ponte de Waterloo. Programas que eu fazia com minha namorada Gillian, que trabalhava como Studio Assistant em Bush House, até o dia em que o marido, um advogado chamado John, foi trabalhar em Hong Kong e ela o seguiu.

Vieram então os chás e as conversas sobre Proust com a mulher de um diplomata que trabalhava demais, uma relação intensa, mas sem malícia, talvez fosse até mais uma grande amizade. Meu confidente desse affair tornou-se um colaborador freelance da BBC, o saudoso Narceu de Almeida, grande amigo do Fernando Sabino, graças ao qual seria escolhido por Adolpho Bloch em 1965 para dirigir a Sucursal a Manchete em Paris, com o fotógrafo Alécio de Andrade.

Capa do livro Vozes de Londres -
Memórias Brasileiras da BBC. Desde
15 de março de 1938, a British
Broadcasting Corporation
transmite para o Brasil. Entre seus
primeiro redatores está o poeta
Vinicius de Moraes Seguiram-se outros
escritores: Antonio Callado, José J.
Veiga (ambos na época
da 2ª Guerra ), Caio de Freitas
(que depois foi redator da
Manchete), os jornalistas Ivan
Lessa, Telmo Martino, Jáder de
Oliveira, Jason Tércio, Nemércio
Nogueira Santos, Fernando
Pacheco Jordão e Vladimir Herzog, os
atores de teatro Sergio Viotti e
Madalena Nichols (brasileira casada com
um inglês que fez sucesso nos
palcos londrinos), enfim, uma imensa
legião de intelectuais brasileiros
que marcou a BBC e foi
marcada por ela em seus 78 anos
de vida ativa. 
Conheci o Narceu quando ele me levou uma resenha do filme Tom Jones para o Serviço Brasileiro da BBC. Quando veio ao Rio para o 1º FIC, em 1965, regiamente acompanhado pela Bond Girl Honor Blackman, Narceu me levou à redação de Frei Caneca, onde Jaquito e Arnaldo Niskier me convidaram para o que – não tinha a menor ideia – viriam a ser 35 anos de Bloch Editores.

A solidão cobrava seu tributo entre meus colegas da BBC.

Um garoto jovem e brilhante, homossexual assumido — não dava bandeira, que os tempos eram discretos — resolveu trazer do Brasil sua amiga poeta e casar com ela.

O casamento, de papel e tudo, no cartório das estrelas, em Victoria (Liz e Burton casaram lá), terminou duas semanas depois com o arremesso de um cinzeiro de cristal Lalique na testa de um dos cônjuges, não lembro qual. A noiva procurou abrigou no apartamento de outro colega da BBC e logo depois voltou ao Brasil. O noivo, jovem e brilhante, prosseguiu suas investigações sexuais e intelectuais em Londres e, no ano seguinte, de férias na Espanha, morreu afogado, ou se afogou, na costa da Andaluzia.

Quem cuidou das disposições funerárias foi nosso cônsul em Sevilha, o poeta João Cabral de Mello Neto.

O homossexual quarentão que deu abrigo à poeta (depois viúva) do cinzeiro Lalique também vivia seu drama. Tinha um caso havia anos com um inglês da aristocracia rural e morava no apartamento londrino do namorado. Mas a família pressionava o filho para se casar — com uma mulher, de preferência. Nosso colega, encerrado o expediente da BBC, recolhia-se ao apartamento com um litro de uísque e botava no toca–discos a ópera A coroação de Popéia — esvaziava a garrafa e viajava na música de Monteverdi, projetando-se na figura de Popéia, cujo amante, Nero, rompia com a mulher, Otávia, e a fazia coroar imperatriz.

Só mais uma nota de pé de página sobre os colegas brasileiros da BBC. Quando saí, em 1965, quem ocupou a minha vaga foi Vladimir Herzog, que, infelizmente, não cheguei a conhecer. Mas, nascido no mesmo ano, sempre me identifiquei muito com ele e, como jornalista de esquerda, podia ter sofrido um destino parecido. Trabalhei em São Paulo no início da revista Veja, de março de 1968 a setembro de 1969. Voltei para a Bloch em 1969 para dirigir a Fatos&Fotos. Soube depois que muitos colegas da Abril foram levados aos porões da tortura em São Paulo – escapei por ter voltado ao balneário da República, quem sabe?

Mas, voltando à radiofonia da BBC. Fazendo a locução ao vivo, você dispunha de um botão à sua frente, ao alcance da mão direita – o famoso e controvertido “cough button”, “botão da tosse”. Duas escolas de opinião viviam em guerra permanente – quase uma guerra teológica, sobre o botãozinho que se resumia no dilema “to cough or not to cough” – “tossir ou não tossir”.

Os adeptos da escola natural defendiam que era normal um locutor tossir de vez em quando, aquilo ajudava até a injetar descontração nos trabalhos e criar mais intimidade com o ouvinte. Já os adeptos do uso do botão, da locução “engessada”, não admitiam de forma alguma o menor resquício do indecente pigarro numa transmissão. Não consigo lembrar se eu tossi alguma vez, mas a simples existência de tal botão me traz lembrança do temperamento característico do britânico e dos falsos dilemas que ele sempre inventou para acobertar dilemas maiores e mais reais.

Mas aí prefiro passar a bola para o nosso bom e velho Shakespeare. . .


terça-feira, 2 de fevereiro de 2016

Memórias da redação: as cartas que esclarecem a penúltima crise da revista Manchete antes da falência da Bloch

Há duas semanas, Roberto Muggiati, ex-diretor da Manchete, escreveu neste blog um artigo sobre "David Bowie, Justino Martins e o Rock". Muggiati citou uma das mudanças na condução da revista, em 1997, quando ele deixou a direção - tornou-se editor de Projetos Especiais - e o jornalista Tão Gomes Pinto foi importado da Pauliceia com a missão de reformar a Manchete. Pouco meses depois, como contou no mesmo artigo, Muggiati seria chamado a reassumir o cargo. "Em 31 de outubro, Dia das Bruxas, uma sexta-feira, o editor paulista pediu as contas e se mandou. Jaquito me ligou comunicando que eu estava de volta à direção da Manchete e que o fechamento da revista na segunda-feira seria por minha conta", escreveu ele no citado artigo.
Pois bem, nesses tempos em que o vice Michel Temer reabilitou a carta, um formato de mensagem que parecia aposentado pelos emails e whatsapps da vida digital, um dileto seguidor deste blog enviou reproduções da troca de cartas entre Tão Gomes Pinto e Jaquito, então presidente da editora. O leitor pede anonimato, diz que espera estar contribuindo para a "memória da redação" e revela o "documento" que explica com alguma dramaticidade o pedido de demissão referido pelo Muggiati (o famoso "Muggi das Crises" como Alberto Carvalho apelidou de tanto que era convocado para voltar à "cadeira elétrica" de diretor quando terremotos editoriais abalavam a revista).
Abaixo, as cartas que selaram aquele episódio de bastidores, o penúltimo conflito interno da revista antes da crise final, a falência, três anos depois.

O PEDIDO DE DEMISSÃO DE TÃO GOMES PINTO


A RESPOSTA DA DIREÇÃO DA BLOCH


ATUALIZAÇÃO: POR EMAIL, ROBERTO MUGGIATI ENVIA AO BLOG MAIS INFORMAÇÕES:

"Esclarecendo melhor. Sempre tive a impressão de que, enquanto vivesse, Adolpho Bloch não me tiraria da Manchete. Veja só as datas: Adolpho morreu em 19 de novembro de 1995. Em meados de 1996, Jaquito deu início ao seu projeto pessoal de salvar a revista. Assumiu a chefia da Manchete, como um espécie de diretor-tampão, o Roberto Barreira, até a chegada do Tão e seus dois escudeiros. O Roberto Barreira tinha a vantagem de falar italiano e assim ajudar o Carlo Rizzi na implantação do novo projeto gráfico. Essa, para mim, foi a grande inovação da Manchete. Por mais talento e intuição que tivesse, o nosso grande Wilson Passos não tinha as bases científicas do Rizzi, um dos melhores designers italianos. E também, àquela altura, o Wilson já tinha perdido o tesão com a Bloch. Com a reforma gráfica implantada - executada pelo Vincenzo Scarpellini, trazido da Itália para isso pelo Carlo - o triunvirato Tão-Otávio-Núnzio fechou a primeira edição na segunda-feira, 9 de outubro de 1996. No dia anterior, Adolpho completaria 88 anos. Como mencionei no artigo sobre Bowie, Justino e o rock, fechei a edição de Carnaval da Manchete de 1997 (Tão recebeu uma folga), editei os 52 fascículos de História do Brasil, encartados ao longo da Manchete na gestão do Tão e fiz a edição dos 45 anos da Manchete (e também o número extra da Fatos&Fotos sobre a morte da Princesa Diana, que saiu antes da Manchete). A edição Manchete/Marinha foi editado pelo nosso Alvimar. Os fascículos da História do Brasil foram diagramados pelo grande J.A.Barros. Já a Manchete 45 anos foi paginada com o Wilson Passos. A F&F de Lady Di, acho que foi com ambos, Passos e Barros. 
No mais, Dia das Bruxas, Tão vai passear pelo Catete e decide pedir o boné...
Um abraço do Muggi das Crises. 
P.S - A carta-resposta está muito melhor que a do Tão, acho que foi o Cony quem escreveu, não foi?"