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terça-feira, 2 de setembro de 2014

Michael Ende: Brics na cabeça e uma câmera na mão... Fotógrafo alemão que mora no Rio joga, literalmente, uma luz no lixo do Brasil e da China.


por José Esmeraldo Gonçalves - para a revista Contigo - (*)
O fotógrafo e documentarista Michael Ende, 55, frequenta a maior ponte-aérea do mundo. Mora no Rio de Janeiro e trabalha logo ali, na China, a 17.339 quilômetros. E seus próximos destinos são Rússia, Índia e África do Sul. Isso mesmo, o roteiro Brics. Nascido em Liepizing, na então Alemanha Oriental, em 1959 – quando ainda não existia Muro de Berlim – mudou-se com a família para Wuppertal, na Renânia do Norte-Vestfália. Morando no Brasil há quase trinta anos,  tornou-se um carioca adotivo. Casado há 18 anos com uma brasileira, a assistente social Isa Vidinho, 55, Ende mora em Santa Teresa, no centro do Rio, e passa uma boa parte do seu tempo em um sítio em Guapimirim, na região serrana fluminense. É onde relaxa entre uma e outra viagem. 
“Acordo cinco e meia da manhã, acendo incensos, faço uma meditação, limpo a casa, faço minha comida, meu pão, e estudo chinês”, conta. 
Mas os dias na serra são agora pausas não muito longas desfrutadas em meio à realização de um projeto fotográfico de vasto alcance. Depois de vasculhar todas as regiões do Brasil trabalhando para revistas alemãs, como Stern e Geo, Ende agora aponta suas câmeras para uma tarefa ambiciosa: retratar os Brics e conceder à sigla uma imagem humana. Juntos, os países que fazem parte do grupo reúnem uma população que supera três bilhões de pessoas. São economias em busca de novas alternativas para crescer, como seus líderes mostraram durante o 6º Encontro de Cúpula, em Fortaleza (CE), logo após a Copa. Os números dos Brics são conhecidos. Representam 19% do PIB , 41,6%  da população e 26% da área terrestre do planeta. Michael Ende, contudo, busca as populações e culturas que estão por trás das estatísticas impessoais. Mostra a cara e alma desses gigantes territoriais e transforma em imagens suas semelhanças e diferenças. O trabalho – que faz parte do projeto “Vizinhos Distantes” - é de grande dimensão e está apenas começando. Um primeiro capítulo já pôde ser visto na mostra “Brasil-China: luz no lixo” que esteve em cartaz no Centro Cultural da Justiça Federal, no Rio, durante a Copa do Mundo, e que deverá ser levada a outras capitais. Em fotos e vídeos, Ende espelha a atividade de catadores brasileiros e chineses. Mostra o lixo globalizado. Fará o mesmo nos demais Brics e, em seguida, abrirá suas lentes comparativas também para outros ângulos como a colheita não mecanizada, onde agricultores trabalham com as  próprias mãos, atividade ainda predominante nos quatros países, ou a forma como cada povo se comporta ao frequentar, por exemplo, uma praia, ou, ainda, revelará aspectos da culinária e tipos de beleza em cada região. 
Desvendar vizinhos distantes é quase uma constante na trajetória aventureira do fotógrafo. Desde jovem, ele sinalizava que queria ter o mundo na sua câmera. Nos anos 1980, quando a globalização nem era vocábulo, decidiu que Wuppertal era pequena demais para suas objetivas. 
“Escrevia uma coluna no jornal da cidade. Tinha 19 anos, falava de política local e outros acontecimentos. Fiz também matérias sobre música. Ainda na faculdade publiquei na revista Stern uma reportagem sobre metaleiros”, diz, acrescentando que é roqueiro e toca bateria. “Mal” – adverte. “Se tocasse bem seria músico”. 
Já na época, Ende planejava abrir horizontes. “Tinha essa visão. Lembro-me de que falei para os meus pais que um dia iria para o Brasil. Eles achavam que era apenas mania de grandeza. Mas logo depois fui para Portugal, me apaixonei pela cultura e pelo idioma e passei a estudar português”, relata. Enquanto colaborava com publicações alemãs, ele registrava cenas da vida local, quase sempre em preto e branco, o que levou um dos seus professores a identificar no seu estilo algo de Cartier Bresson. Portugal, o “laboratório” onde se desenvolveu como fotógrafo, acabou se tornando sua ponte para o Brasil. Lá o jornalista conheceu muitos brasileiros até casualmente receber de um deles, em 1985, um convite para atuar em projetos da Associação Brasileira de Municípios, em Brasília. “Meu primeiro contato com o Brasil foi uma maravilha. Tive que fazer uma conexão no Rio, o voo em que vinha de Frankfurt estava atrasado. Eu fui ao balcão da companhia aérea, agitado e supernervoso, temendo perder o avião para Brasília. E a primeira brasileira que conheci sorriu e disse “meu amor, calma, vai ter outro voo depois”. Tinha 25 anos e achei maravilhosa aquela voz doce e o primeiro contato com o conceito de ‘nada- funciona-mas-no-final-tudo-se-resolve’”,  recorda-se Ende que, hoje, “com a idade”, admite que já não leva tão na “esportiva’ situações como aquela. Logo constatou que o tal trabalho que desenvolveria em Brasília era um desses casos do tipo “nada funciona”. Não funcionou. “Parecia um cabide de emprego, era um nada”, diz ele. Mas já fascinado com o país, o fotógrafo partiu para conseguir um visto de permanência, retomou os contatos e “vendeu” para a Stern a ideia de uma reportagem sobre a espiritualidade no Planalto Central, onde atuava a médium Neyva Zelaya, líder de uma famosa comunidade mística conhecida como Vale do Amanhecer. Foi a primeira de muitas reportagens. Requisitado pelos editores das revistas ilustradas alemãs, fascinados com os temas que os trópicos ofereciam, Ende acabou deixando Brasília e fixando-se no Rio, em 1988, onde montou sua base. “Passei a fazer muitas reportagens e vídeos para revistas e TVs da Alemanha. Percorri toda a América do Sul, todos os estados do Brasil, reservas indígenas, fronteiras, viajei muito, muito, produzindo textos, fotos e documentários”, conta. Ele destaca uma reportagem que fez na Amazônia sobre o Santo Daime. Como uma espécie de tíquete para entrar naquele mundo místico em plena selva,  recomendaram-lhe que experimentasse o chá ayuasca, que faz parte do ritual do Daime e é feito de plantas nativas que potencializam a percepção. “Foi um choque. Você se sente ligado ao universo, reflete sobre sua vida. Pode ser doloroso. Não é um prazer, não recomendo. As pessoas falam que uma sessão de ayuasca substitui um ano de análise. Eu vejo dessa forma. É muito intenso, você direciona seus pensamentos para seus problemas”, conclui Ende, que transformou a experiência em um documentário de 116 minutos intitulado “O Vinho das Almas”. A relação com o Santo Daime parou aí. Ende pratica o budismo. “Como filosofia, não é uma religião propriamente. É uma maneira de ver a vida, um ensinamento, não me defino como budista. Mas acredito que existe uma coisa que não entendemos, não percebemos. Tenho um lado espiritual, uma ligação com natureza”, explica. Tráfico de drogas, bailes funks, travestis da Lapa, a perigosa rotina dos pilotos dos pequenos aviões que cruzam a imensidão da Amazônia foram outros temas nos quais o repórter-fotográfico mergulhou em dezenas de reportagens. “Eu adorava. Ao lado daqueles pilotos, por exemplo, conheci o voo “espanta macaco”, quando a pista é tão curta que o avião decola raspando nas árvores”, ri. Uma das motivações para abrir o horizonte rumo à China é, de certa forma – explica Ende-  sentir ter esgotado o Brasil. “Já estive em todo lugar. Tenho a impressão de que o Brasil muda muito devagar. As fotos que fiz há alguns anos, de carnaval, baile funk, por exemplo, podem ser publicadas hoje, quase nada mudou. Só apareceu mais um piercing na barriga da menina funkeira. Como fotógrafo, também não tenho mais curiosidade sobre a Alemanha. Hoje acho que uma realidade como a da China é mais excitante”, admite.
Curiosamente, o interesse pela China nasceu de uma motivação jornalística – a crescente importância do país – e ganhou um impulso afetivo extra. “Há alguns anos, eu havia recomendado à Bárbara , 29,  filha do primeiro casamento da Isa, que estudasse chinês. ‘Esquece o inglês’, brinquei. Ela até começou as aulas mas logo desistiu. Um dia Isa me deu como presente de Natal uma gramática chinesa toda riscada. Achei estranho, parecia só um presente barato. Era o livro que a filha tinha deixado de lado. Só que eu comecei a estudar. Isa se surpreendeu, não imaginava que iria levar tão a sério”. Ende admite que aprender o idioma foi fundamental para se movimentar na China já em busca de personagens locais e suas circunstâncias. “Estou no nível intermediário, escrevo meus emails, falo, me viro em qualquer situação. Continuo estudando todos os dias”. Desde a primeira visita – em 2008 - Ende foi aos poucos aprendendo a se movimentar na China. “Trabalhar no Brasil é mais fácil porque o meu português é bem melhor. O chinês, por outro lado, é mais aberto. Para mim isso foi uma surpresa. Em geral, as pessoas têm prazer em serem fotografadas. Lá não tem risco de segurança, a desconfiança é zero. Apenas uma vez tive problema com a polícia. Mas eles chegaram falando “com licença, o que vocês estão fazendo aqui”. Eu estava acompanhado da minha assistente e expliquei que registrava imagens de reciclagem. “Não pode. Posso convidar vocês para irem até a delegacia?”, disse o policial. Fomos, nos ofereceram chá. O delegado pediu para ver as fotos, explicou que a cidade, Yanji (na província de Jili, fronteira da Coréia do Norte), estava em campanha para melhorar a imagem. Perguntou se eu podia deletá-las. Deletei. Mais chá, pedidos de desculpas e saímos. Já na rua, minha assistente na China e na Rússia, a arquiteta e designer Daria Lisaya, que é filha de uma russa, o pai é da Moldávia, e trabalha comigo nem projetos nos dois países, reclamou: “’Você é burro. Podia ter deletado uma foto só. O delegado só queria mostrar serviço diante dos seus subordinados”. No dia seguinte, voltei ao local. Fiquei na cidade por duas semanas e não fui mais incomodado”, conta. São lições do “jeitinho chinês” que se acumulam desde 2008, quando Ende foi à China pela primeira vez. “Viajei com um grupo de estudantes brasileiros. Ficaria apenas quatro semanas mas logo nos primeiros dias mostrei fotos de uma série que chamei de “Rio by Night” e logo me convidaram para fazer uma exposição. Liguei para Isa e disse: ‘amor, vou te falar uma coisa, muito bom aqui, vou ficar uns meses’. Tudo aconteceu com uma rapidez enorme. Fiz a exposição, exibi o filme do Daime. Passei a ficar seis meses lá, seis meses aqui. Dei aulas de fotografia na Nanquim Communication University, por dois anos. E agora fui chamado pela Kennedy School, que leva mestres de várias áreas para ensinar na China”, revela.

Em setembro, Ende embarca de novo na ponte-aérea para a China. Embora entusiasmado com mais um capítulo do projeto “Vizinhos Distantes”, admite que passar tanto tempo não é fácil, sobretudo em relação ao casamento. “É difícil. De um lado é bom porque não cai na rotina. Isa é mais tranquila. Eu gosto de descobrir coisas novas, me sinto deslumbrado por viver a cultura do país. Mas Isa já foi à China umas cinco vezes. E esteve ao meu lado no aterro sanitário de Gericinó. Gosta da Bola Preta mas sacrificou o carnaval e me ajudou muito na produção das fotos”, finaliza.
(*) Texto com trechos extras