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quinta-feira, 12 de outubro de 2023

Roberto Muggiati revela o traço irônico e bem-humorado de J.A.Barros (1931- 2023) nos bastidores da redação da Manchete e recorda o dia em que ele preparou uma "armadilha" para um crítico de cinema presunçoso


J.A.Barros transformou em figuras muita gente da velha Bloch. Mas, infelizmente, suas frágeis  esculturas eram arte efêmera. Nem o próprio artista guardou suas caricaturas em 3D. A técnica era simples. 
Ele fazia o desenho colorido sobre papel branco que, em seguida, recortava e colava sobre uma pequena placa de isopor. 

Aí aparava cuidadosamente o conjunto, obedecendo ao contorno marcado pelo desenho e adicionava uma espécie de minipedestal. 

Bela figura que se vai. O amigo Barros faleceu hoje, aos 92 anos.





Os exemplares reproduzidos acima são raríssimos e pertencem aos meus arquivos. Barros presenteava aos seus caricaturados e fui um deles. Os desenhos eram feitos nas horas que afinal importam: as vagas.   

Leia também "O teste Guilaroff de Cinefilia" sobre o dia em que o Barros surpreendeu um famoso crítico de cinema. 

Amantes do cinema se reconhecem pelo apego ao detalhe. No caso, aqueles créditos de produção que, nos anos 40 e 50 rolavam sempre no começo da “fita”. Dos atores principais ao diretor, passando por cenário, fotografia, música, orquestrações, figurinos e ... cabelos. De tanto ir ao cinema, ficávamos – os mais curiosos – com aqueles nomes gravados na memória. Foi assim que nosso diagramador João Américo Barros me surpreendeu uma tarde na redação ao perguntar a um crítico da Manchete, à queima roupa, se ele conhecia Sydney Guilaroff. O crítico não era um crítico qualquer, mas um daqueles Moniz Vianna’s boys que galopavam com os cavalarianos de John Wayne no Monument Valley e davam relutantes duas ou três estrelas aos filmes em cartaz no famoso quadro de cotações do Correio da Manhã. Sem nenhum pudor ou culpa o crítico respondeu: “Sidinêi quem?” Vibrei com o Barros, Sydney Guilaroff foi um nome que, desde que o vi na tela pela primeira vez, eu carregaria na cabeça para o resto da vida, mesmo sem conhecer ainda sua incrível história. E saquei na hora também que o Barros tinha criado o teste definitivo de cinefilia. Se o cara ignorava Sydney Guilaroff, não merecia ser considerado cinéfilo, mesmo assinando todas as críticas do mundo. 

CLIQUE AQUI

 


terça-feira, 22 de novembro de 2022

Memórias da redação (e da vida): Todas as Copas do Mundo, menos duas... • Por Roberto Muggiati

O cartaz da Copa de 1950

Minha mãe trocava minha fralda quando Leônidas da Silva inventou a bicicleta. Aos oito meses de idade, eu não tinha a menor ideia de que o mundo era uma bola. Artilheiro da Copa do Mundo da França, em 1938, o “Diamante negro” fez sete gols, um deles descalço, ao perder uma chuteira no aguaceiro que foi o jogo contra a Polônia. Eliminado pela Iugoslávia e Espanha nas Copas de 1930 (Uruguai) e 1934 (Itália), o Brasil poderia ter sido campeão na França, não fosse a ausência de Leônidas, contundido, na semifinal contra a Itália, que ganhou por 2x1 com um pênalti duvidoso marcado pelo juiz suíço.

A "zebra" que virou filme

V
eio a Guerra, veio o pós-Guerra e o Brasil sediou a Copa de 1950. Com meus tenros doze anos chorei lágrimas amargas ouvindo pelo rádio com meu avô cego a final contra o Uruguai. Uma compensação: minto se disser que nunca vi um jogo de Copa do Mundo, vi dois, em Curitiba, no Durival Britto e Silva, em Vila Capanema. Paraguai 2x2 Suécia e Espanha 3x1 Estados Unidos, este com o polêmico Mário Viana como referee (era como se chamava o juiz na época). Aquele bisonho time norte-americano feito de imigrantes trabalhadores braçais (o soccer era um pária nos EUA), eliminaria quatro dias depois em Belo Horizonte a Inglaterra, uma das grandes favoritas. O feito foi celebrado até num filme americano de 2005, The Game of Their Lives/Duelo de campeões, com o jogo no Estádio Independência de BH filmado no campo do Fluminense, no Rio.

Em 1954, a Copa aconteceu na Suíça. O Brasil estreou um novo uniforme, com a camisa amarela e os calções azuis – depois da derrota no Maracanã em 50 a camisa branca e o calção azul usados desde 1919 eram considerados azarados. A seleção foi eliminada nas quartas pela Hungria, que perderia a final para a Alemanha. Esta foi a primeira Copa que acompanhei já de dentro de uma redação, desde março eu trabalhava como redator na Gazeta do Povo de Curitiba. 

Em 1958, uma nova geração entrava em campo na Suécia. Guardo muito viva a lembrança de Pelé salvando a pátria contra o País de Gales com o único gol da partida, o seu primeiro numa Copa, depois de um belo “chapéu” no defensor (passa a toda hora na TV). A memória foi marcante porque eu acompanhava a partida pelo rádio numa caminhonete da reportagem a caminho do local nos arredores de São José dos Pinhais onde havia caído o Convair da Cruzeiro do Sul, causando a morte do senador Nereu Ramos, do governador de Santa Catarina Jorge Lacerda e do deputado Leoberto Leal.

Em 1961, estudando jornalismo em Paris, tive o privilégio de ver Pelé jogar pelo Santos (5x4 contra o Racing) num torneio internacional no Parc des Princes. 

Em 1962, de volta de Paris e a caminho de três anos na BBC de Londres – numa fase muito louca da minha vida que batizei de “Seis meses num DKW” – lembro do domingo da final da Copa do Chile, Brasil 3x1 Checoslováquia, eu rodando de carro com uma namorada, a certa altura subimos a serra até Vila Velha, no segundo planalto. Quando voltamos ao centro de Curitiba, bem na Cinelândia, o Brasil fazia o terceiro gol, o DKW quase levantou voo com as bombas cabeça-de-negro que estouravam debaixo da sua carroceria.

Em 1966 o país inventor do soccer foi brindado como sede da Copa. Repórter especial da Manchete em Frei Caneca, sem participar diretamente da cobertura, lembro que meu colega Muniz Sodré, que falava russo, entrevistou o goleiro soviético Lev Yashin, de passagem pelo Rio. Algumas peculiaridades: em meados de abril, a revista Time publicou uma reportagem de capa sobre London: The Swinging City, no que pareceu a muitos uma sutil matéria paga encomendada para encher a bola da Inglaterra. Houve também o episódio da taça Jules Rimet, roubada por alguns dias e encontrada por um cachorro em seu pacato passeio com o dono. Tempos depois escrevi um texto sobre a Copa da Inglaterra intitulado “O ano da Taça Roubada”, o duplo sentido aludindo à bola que bateu no travessão superior sem cair dentro da risca, mas foi marcada como gol para a Inglaterra, na final com a Alemanha.

Uma referência ao salto tecnológico nas comunicações: em 1966 só víamos os jogos no dia seguinte, quando o videoteipe chegava por malote; já em 1970, assistíamos às partidas do México ao vivo por satélite, mas em preto e branco; e na Copa da Alemanha, em 1974, vimos os jogos ao vivo e em cores.

México, Copa de 1970- A histórica foto de Orlando Abrunhosa
na capa da Fatos & Fotos

No ano do Tri eu expiava os meus pecados numa semanal maldita, a Fatos&Fotos, prima pobre da Manchete. Fazendo uma revista mais jovem e descolada, ameaçávamos o carro-chefe, e isso desagradava profundamente Adolpho Bloch. Era muito difícil lidar com o capo, mas de repente entrou em cena a doce figura do Hélio Bloch que, com toda sua diplomacia, passou a intermediar meu relacionamento com Adolpho. Foi assim que, fazendo fé na seleção de 1970, começamos a preparar uma edição especial de Fatos&Fotos. Se o Brasil não fosse campeão no México, ficaríamos com um encalhe monumental de 150 mil exemplares na Gráfica de Parada de Lucas. O Hélio assumiu a responsa e seguimos em frente. A sorte estava o nosso lado, F&F por data de fechamento recebeu as fotos do jogo de estreia do Brasil, contra a Checoslováquia, e dei na capa aquela foto fantástica do Orlandinho Abrunhosa dos Três Mosqueteiros – Pelé socando o ar ladeado por Tostão e Jairzinho – que uma semana depois saía colorizada na capa do Paris-Match. Terminada a final de domingo do 4x1 na Itália, saí de casa no Leme atrás de um táxi que me levasse à redação, no meio da multidão ensandecida. Fechamos a edição com radiofotos do jogo em p&b e terça-feira cedinho Fatos&Fotos chegava gloriosa às bancas com a primeira edição do Tri no Brasil, no mundo, “quiçá na galáxia”, como diria o saudoso JK.

Em 1974, os sonhos do tetra foram atropelados por um futebol novo e sensacional, o Carrossell Holandês, também chamado de Laranja Mecânica (pela cor das camisas e por associação com o filme irreverente de Stanley Kubrick, A Clockwork Orange.) A Holanda nos despachou e perdemos ainda o 3º lugar para a Polônia. A Alemanha venceu a final e a Laranja Mecânica tentaria de novo sua sorte na final seguinte, contra a Argentina, na Copa de 1978. Na derrota de 74 Justino Martins tirou da gaveta uma capa bizarra copiando uma ideia da revista alemã Stern: uma foto de Zagallo com a cabeça inchada em forma de bola de futebol.

 Copa esquisitíssima a de 1978! A Argentina começou perdendo para a Itália. Correu o risco de ser eliminada pelo Brasil num empate sem gols numa nervosa noite de domingo em Rosário. Para ir à final, precisava vencer o Peru por quatro gols ou mais,. E não é que, num jogo duvidoso,  goleou o time de Chumpitaz, Cubillas e Manzo por 6x0?. Na final,  ganhou sua primeira Copa derrotando a Holanda. O Brasil ficou em 3º, vencendo a Itália. Não perdeu um único jogo nessa Copa, sagrando-se o “campeão moral”. Na época eu tinha trocado de mulher, trocado de apartamento e traduzia o best seller Holocausto, uma série de repercussão mundial que passaria na TV Globo.


Copa da Espanha, 1982 - O pequeno torcedor chora a derrota do Brasil no estádio
do Sarriá, em Barcelona. A foto da capa do Jornal da Tarde, feita pelo
fotojornalista Reginaldo Manente, 
 ganhou o Prêmio Esso do ano. 

Em 1982, na Espanha, tínhamos uma de nossas melhores seleções, aquela de Zico, Sócrates e Falcão, comandada por Telê Santana, Paolo Rossi, mas fomos eliminados em Barcelona pela Itália num hat trick do infernal Paolo Rossi. Vimos o jogo de pé na TV da sala do Adolpho, a cada gol de Rossi ele me abraçava eufórico e eu dizia: “Mas, Adolpho, foi gol deles!” Se serve de consolo, Josué Montello e eu fizemos parte do júri que deu o Prêmio Esso à foto do garotinho brasileiro chorando na arquibancada do estádio Sarriá.

Em 1986, a Colômbia, endividada, desistiu de sediar a Copa, que acabou voltando para o México. O Brasil foi eliminado pela França nas quartas de final na decisão por pênaltis. Foi a Copa de Diego Maradona, coroada por aquele gol contra a Inglaterra feito pela “mano de Diós”... A Argentina venceu a Alemanha na final por 3x2.

Meio século depois, a Copa voltou à Itália,  em 1990. O Brasil do técnico Sebastião Lazzaroni foi eliminado pela Argentina ainda nas oitavas por 1x0, gol de Caniggia. O estilo da seleção foi batizado pela imprensa de Era Dunga, pela ênfase defensiva e pelo temperamento taciturno do volante, que chegaria a capitão do time do Tetra e a chefiar o escrete na Copa de 2010.

Um lance bizarro na Copa da Itália foi a tentativa frustrada do goleiro colombiano Higuita, metido a líbero, de driblar o atacante de Camarões Millá, causando a derrota da Colômbia por 2x1. A nota triste foi a morte de João Saldanha, quando fazia a cobertura da Copa para a TV Manchete – Saldanha que renunciou ao cargo de técnico da seleção em 1970 alegando interferência do ditador Emílio Garrastazu Médici na escalação do time. E um episódio doméstico muito estranho me aconteceu logo após a eliminação do Brasil pelo gol de Caniggia. Naquela tarde de domingo, não sei por que – talvez para descarregar a tensão – decidi ir ao banheiro fazer a barba. De repente, o pesado armário espelhado de metal embutido despencou sobre mim. Felizmente, esquivei-me a tempo. Foi então que fiquei sabendo da existência de cupins terríveis que corroem o concreto, eu achava que eles só comiam madeira e papelão...

Em 1994, veio o tão sonhado tetra, no embalo de Romário, Bebeto & Cia, uma conquista dedicada a Ayrton Senna, morto no circuito de Imola em 1º de maio. Manchete publicou uma edição especial, sem a repercussão esperada. Talvez ganhar uma Copa na disputa de pênaltis tenha gerado uma atmosfera anticlimática – seja como for, salve Roberto Baggio, com aquele chute estratosférico, lembrando os petardos do futebol americano sobre aquelas traves elevadas...

Em 1998, na França, foi aquela história que todos sabemos. Cony – especialista em informações de cocheira tipo “O-Tancredo-não-vai-tomar-posse” – telefonou de Paris na madrugada da final anunciando: “O Ronaldo não vai jogar!” Não jogou. E Zinedine Zidane fez a festa, no primeiro título dos franceses. Foi nossa última Copa na redação. No final de setembro, pela primeira vez em meus 33 anos de Bloch Editores, a folha de pagamento não deu o ar de sua graça. Passamos a receber “vales” aleatórios muito abaixo do nosso salário. Até o dia 1º de agosto de 2000, quando a empresa decretou falência e as portas do majestoso conjunto de prédios da Rua do Russell desenhado por Oscar Niemeyer foram lacradas para sempre.

Ronaldo Fenômeno se redimiu em 2002 na Copa do Japão e da Coreia, ao lado de Ronaldinho Gaúcho, Rivaldo, Cafu e outras feras. Aquele gol de falta do Ronaldinho encobrindo o goleiro inglês! E o gol de bico do Fenômeno contra a Turquia! Sem falar no magistral 2x0 contra a Alemanha na final. A seleção comandada por Felipão era a primeira a chegar ao penta – e continua no topo.



Em 2006, a segunda Copa na Alemanha, o Brasil caiu nas quartas de final, novamente o algoz foi a França. O vilão eleito foi Roberto Carlos, que estaria distraído ajeitando o meião enquanto Thierry Henry concluiu a assistência na cobrança de falta de Zidane garantindo o 1x0 da vitória. Em nova final por pênaltis, a Itália derrotou a França, conquistando o seu tri.

Em 2010, foi a Copa das vuvuzelas na África do Sul. E a entrada de um novo país para o seleto clube de campeões, a Espanha. O Brasil de Dunga foi eliminado nas quartas pela Holanda, que se sagrou vice de uma Copa pela terceira vez.

A Copa de 2014 nos traz tristes memórias: a do apagão contra a Alemanha nos 7x1 de Belo Horizonte (nosso torcedor emérito Mick Jagger estava na arquibancada do Mineirão) e a derrota de 3x0 para a Holanda na disputa do terceiro lugar. Alemanha e Argentina fizeram uma final parelha no dia 13 de julho no Maracanã e um gol solitário de Götze na prorrogação (113’) deu o tetra à seleção dirigida por Joachim Low.

Na Copa da Rússia, em 2016, o canário que cantou mais alto foi belga. O Brasil foi eliminado nas quartas de final pela Bélgica, que terminou o torneio em terceiro. A França venceu a Croácia na final por 4x2, conquistando sua segunda Copa.

O torneio da FIFA é um clube fechado de oito países que detêm os 21 troféus: Brasil, 5; Alemanha e Itália, 4 cada; Argentina, Uruguai e França, 2 cada; Inglaterra e Espanha, 1 cada.

Agora temos um cenário totalmente inusitado: a primeira Copa no final do ano, num pais islâmico do Oriente Médio e a última com o formato de 32 equipes: a edição de 2026, no Canadá-Estados Unidos-México, será ampliada para 48 seleções.

O Brasil – único país que participou de todas as 22 edições da Copa do Mundo – é um dos grandes favoritos, com um desempenho impressionante nas eliminatórias: venceu 14 jogos, empatou três, teve o melhor ataque (40 gols) e a melhor defesa (cinco gols), com 88% de aproveitamento, seis pontos à frente da Argentina. Além de um elenco de craques com um vasto repertório de qualidades, Tite conta com uma equipe de assistentes que analisa praticamente 24 horas por dia o comportamento técnico, tático e emocional de seus comandados. Com a velha prancheta obsoleta na lixeira, sua seleção movida à base de aplicativos espertos tem tudo para dar certo. Mas no futebol, como em tudo, o subjetivo e o imponderável às vezes provocam surpresas. Vamos aguardar o último capítulo, no dia 18 de dezembro, às 12 horas, no estádio de Lusail.


domingo, 27 de fevereiro de 2022

MEMÓRIAS DA REDAÇÃO: Uma temporada no Inferno • Por Roberto Muggiati

Incêndio no Andraus
Há 50 anos, em 25 de fevereiro de 1972, uma sexta-feira, enquanto o edifício Andraus pegava fogo em São Paulo, o tempo esquentava na Manchete, no Rio. Não mais que de repente, por motivo fútil, o chefe de redação Maurício Gomes Leite e o redator Sebastião Uchoa Leite saíram aos tapas, foi preciso a turma do “deixa disso” para separá-los. 

Mineiro de Montes Claros, Maurício – nós o chamávamos Gomes Leiaute – era crítico de cinema e fez um longa metragem em 1968 chamado A vida provisória. Na fase light da ditadura militar (1964-68), era fácil conseguir verba para fazer filmes, graças à CAIC (Comissão  de Auxílio à Industria Cinematográfica), surgida no estado da Guanabara. O cineasta Paulo César Saraceni, que rodou nada menos do que um documentário e três longas de ficção nessa fase, dizia: “A CAIC foi de longe, a melhor ajuda governamental que o cinema brasileiro teve em toda a sua trajetória”. No filme do Maurício teve um lance típico: uma cena íntima de Dina Sfat nua numa praia, em semi-close, que podia ser tranquilamente filmada numa caixa de areia no estúdio, foi rodada com uma grande equipe em Dubrovnik, na Riviera Dálmata.

Maurício Gomes Leite

Maurício não tinha muito saco para o jornalismo. No final dos anos 1970, visitei-o em Paris, morava num pequeno apartamento perto da Gare de Montparnasse, acabara de casar com uma filha do diplomata Azeredo da Silveira, o bebê recém-nascido interrompeu algumas vezes nossa conversa. Trabalhava como tradutor na Unesco. Soube que morreu sozinho, ainda no exílio parisiense, sem mulher, sem amigos, em 1993, aos 57 anos.

Pernambucano de Timbaúba, Sebastião Uchoa Leite também não tinha saco para o jornalismo. Depois da Manchete, passaria um longo tempo em enciclopédias com Otto Maria Carpeaux e Antônio Houaiss, num trabalho de redação mais ameno e prazeroso que o ajudava a financiar seus livros de poesia, quase uma dezena.

Sebastião Uchoa Leite
Bom poeta, era também bom ensaísta e tradutor (nessa categoria ganhou dois Jabutis). Um de seus favoritos era o poeta francês da Idade Média François Villon, boêmio, beberrão e ladrão, o que explica seu lado meio transgressor. Meu poema preferido do Sebastião é o autoepitáfio publicado em “Obras em Dobras”: “aqui jaz/ para o seu deleite/ sebastião/ uchoa/ leite”. O poeta morreu no Rio em 2003, aos 68 anos. Ignoro se o epitáfio foi gravado em sua lápide, ignoro até se chegou a ter lápide.

Em 1º de fevereiro de 1974, numa manhã morna do mês do Carnaval, chego cedo à redação e um telefonema do fotógrafo Mituo Shiguihara, da sucursal de São Paulo, me tira do meu torpor. Um incêndio fulminante tomara conta do Edifício Joelma, no centro da cidade. Em número de mortes, seria o segundo maior incêndio do mundo, só superado pelo das Torres Gêmeas em Nova York. Cito detalhes diretamente da Wikipedia, que foi bastante precisa:

Tragédia do Joelma
na capa da Manchete
“Concluída sua construção, em 1972, o Edifício Joelma foi imediatamente alugado ao Banco Crefisul de Investimentos. No começo de 1974 a empresa ainda terminava a transferência de seus departamentos, quando no dia 1º de fevereiro, às 8h45 de uma chuvosa sexta-feira, um curto-circuito em um aparelho de ar condicionado no 12º andar deu início a um incêndio, que rapidamente se espalhou pelos demais pavimentos. As salas e escritórios do Joelma eram configurados por divisórias, com móveis de madeira, pisos acarpetados, cortinas de tecido e forros internos de fibra sintética, condição que contribuiu, sobremaneira, para o alastramento incontrolável das chamas. 

Quinze minutos após o curto-circuito era impossível descer as íngremes escadas, localizadas no centro dos pavimentos, que foram bloqueadas pelo fogo e a fumaça. Os corredores, por sua vez, eram estreitos. Na ausência de uma escada de incêndio, muitas pessoas ainda conseguiram se salvar ao contrariar as normas básicas e descer pelos elevadores, mas estes também logo deixaram de funcionar, quando as chamas provocaram a pane no sistema elétrico dos aparelhos e a morte de uma ascensorista no 20º andar. 

Nos braços da mãe, que saltou para a morte no 15º andar, uma criança de um ano e meio foi salva em um dos episódios mais dramáticos do incidente. A multidão acompanhou o salto bem em frente ao prédio. O choro da criança, levada imediatamente ao Hospital das Clínicas, foi ouvido logo após o impacto da queda. No último andar, segundo o depoimento de Ivã Augusto Pires, coordenador do Serviço de Transportes da Câmara, um rapaz jogou-se ao chão e aproximou-se de gatinhas da borda do terraço. Mas uma labareda fez com que ele escorregasse e ficasse suspenso no ar, segurando no parapeito até não mais aguentar e despencar na rua.”

Na redação do Russell, acompanhávamos pela TV as imagens chocantes do incêndio. Era uma triste maneira de vender revista, mas nada podíamos fazer, que ficasse a lição para evitar tragédias futuras. Realmente, depois do Joelma, normas muito mais rígidas de segurança foram criadas e implantadas nos prédios do Brasil inteiro.

O incêndio do Joelma inspirou o filme-catástrofe “The Towering Inferno/Inferno na Torre”, lançado em dezembro de 1974 e uma das maiores bilheterias da época. Artistas da Teoria do Complô não deixaram de anotar algumas “maldições” que atingiram o superelenco:

• Foi o último filme de Jennifer Jones e de Fred Astaire (que, curiosamente, deveu a “Inferno” sua única indicação ao Oscar em toda sua brilhante carreira).

• Herói do filme, o chefe dos bombeiros, Steve McQueen, morreria de câncer seis anos depois. William Holden, morreria sete anos depois de traumatismo craniano ao cair em casa alcoolizado.

• Seis anos depois Robert Wagner seria suspeito da morte da mulher, Natalie Wood, que se afogou ao cair de um iate. Vinte anos depois, o astro do futebol americano O.J. Simpson seria acusado e condenado pelo assassinato da mulher.

Um legado sinistro da tragédia de São Paulo: ignorantes da origem do nome, que era o nome da construtora do prédio, muitos pais batizaram suas filhas como Joelma. Você deve conhecer ou ter ouvido falar de pelo menos uma, são muitas Joelmas circulando hoje pelo Brasil. Já o edifício, compreensivelmente, mudou de nome: hoje se chama Praça da Bandeira.

quinta-feira, 21 de novembro de 2019

O Kiss no Rio e o triste fim de Justino Martins • Por Roberto Muggiati

Na mesa de edição da Manchete, sentido horário; Célio Lyra, Roberto Muggiati, Justino Martins e Alberto Carvalho

Kiss: noite de hard rock no Rio

O Kiss vem aí de novo, desta vez para se despedir. A escabrosa banda de hard rock já iniciou sua turnê End of the Road/Fim da Estrada e se apresenta no Brasil em maio de 2020, em Porto Alegre, Curitiba, São Paulo, Ribeirão Preto, Uberlândia e Brasília. O Rio de Janeiro ficou de fora, talvez até para não misturar o momento melancólico do adeus com a lembrança do principal triunfo do grupo, que juntou o maior público da sua carreira no memorável show no Maracanã em 1983. Eu estava lá e guardo uma lembrança aguda da ocasião: foi quando vi o começo da morte de Justino Martins, o homem que criou a revista Manchete no seu formato histórico.

Iniciada em 1952, a semanal ilustrada ficou famosa pela impressão impecável em cores, mas levou anos para encontrar um diretor de redação à altura do seu potencial gráfico. Henrique Pongetti, o primeiro editor, era um cronista, sem nenhum cacoete de “revisteiro”.  Veio então Hélio Fernandes, que deu um toque jornalístico à Manchete, mas proibiu a entrada na redação dos irmãos Bloch: Arnaldo, Boris e Adolpho. Acabou demitido. Otto Lara Resende – cronista sem vivência de jornal – ficou um ano na direção, em conflito diário com o que chamou “os Irmãos Karamabloch” (nascidos  na Ucrânia, sua alma era mais russa do que judaica). Certa vez, um dos irmãos comprou a bom preço uma batelada de máquinas de escrever. Os outros dois, desconfiados do negócio, se puseram a destroçar as Remingtons no chão da redação.

Arnaldo e Boris morreram em 1957 e 1959 e Adolpho ficou livre para reinar supremo sobre a Manchete. Mas a revista continuava à deriva sem um timoneiro, editada por um triunvirato, fórmula que só diluía as responsabilidades. Adolpho convocou então, para dirigir a Manchete o brilhante correspondente em Paris, o gaúcho Justino Martins. O casamento deu certo, mas a relação seria marcada por amor e ódio – e muita inveja.

Justino Martins
Adolpho tentou tirar Justino da direção da revista na virada dos anos 60/70, mas a manobra não funcionou. Chamou-o de volta. Justino fez charme, disse que tinha um convite para ser RP da grife de Madame Grès, estilista e perfumista de Paris. Era uma armação combinada com a Madame, sua velha namorada, que confirmou a história ao Adolpho pelo telefone. Assim, além de um belo salário, Justino voltou à direção com um bônus de mil dólares, que um funcionário da tesouraria todo fim de mês botava na sua mão em cash, diante de toda a redação.

Mas tirar o “Índio” da direção da Manchete era uma obsessão do Adolpho e ele voltou à carga em 1975. Dispensou o Justino, disse que precisava dele para criar uma revista de decoração (que nunca saiu), e o homenageou com uma grande feijoada para centenas de pessoas no restaurante da Rua do Russell. Involuntariamente, servi de instrumento para esta jogada maquiavélica do Adolpho. Desde 1972 eu editava a revista em maio, quando Justino tirava férias e ia ao Festival de Cannes. Seguro de que eu poderia assumir o posto, Adolpho me empurrou para a direção da revista, onde fiquei até 1980, quando uma crise de saudosismo levou o Justino de volta à Manchete e eu fiquei como seu vice.

Em junho de 1983, ia ao ar a Rede Manchete de Televisão. Sabiamente, Justino profetizou que a TV viera para sepultar a editora. Uma morte ao mesmo tempo real e simbólica marcou essa transição. Em 10 de agosto de 1983, dois meses depois da estreia da TV, Justino Martins chegou à redação uma terça-feira, lá pelas dez da manhã, era o dia mais calmo, depois do fechamento na segunda e antes da saída da revista nas bancas na quarta. Com sua clássica sacola da Air France a tiracolo, falou comigo, que era o seu “segundo”: “Toma conta das coisas, tchê, que vou fazer um exame no Hospital dos Servidores.” O Servidores era uma referência, o Presidente Figueiredo internou-se lá quando teve sua crise cardíaca, e o diretor, Raymundo Carneiro, era um grande amigo do Adolpho. As notícias não foram nada boas. Justino tinha um câncer de pâncreas fulminante. Duas semanas depois, foi transferido para a Clínica Sorocaba, em Botafogo,

Visitei-o uma vez no Servidores e outra num triste sábado na Clínica Sorocaba. A um punhado de amigos que cercava seu leito, Justino confidenciou: “Estou me sentindo como um soldado diante de um pelotão de fuzilamento.” Morreu no dia seguinte, domingo 28 de agosto. Passados 36 anos, sua fama só fez crescer. Como definiu o livro A Revista no Brasil (Editora Abril, 2000): “Foi o editor que desenvolveu definitivamente a fórmula do que chamou de ‘beleza estética na informação.’” Uma beleza flagrantemente ausente nas revistas de hoje. Mesmo tendo sido o jornalista que mais tempo durou na direção da Manchete, eu sempre julguei e admiti que Justino Martins foi a verdadeira alma da revista.


Senti que o Justino estava morrendo na noite de 18 de junho de 1983, quando fomos assistir ao megashow da banda Kiss no Maracanã, diante do maior público na história do grupo. O espetáculo fazia parte da turnê Creatures of the Night, que promovia o disco do mesmo nome, iniciada seis meses antes nos Estados Unidos e encerrada no Brasil, com shows no Rio, em Belo Horizonte (Mineirão) e em São Paulo (Morumbi).

O carro da Bloch nos apanhou no Leblon (Lena faria as fotos para a cobertura da Manchete) e dali pegamos o Justino e sua filha Valéria, de dezesseis anos, motivo principal da ida ao Maracanã. Valéria era filha do segundo casamento de Justino, com Martha de Garcia, a primeira Miss Brasília. Ironicamente, Adolpho Bloch também casou com uma Miss, a gaúcha Lucy Mendes, Miss Rio Grande.

No portão de sua bela casa da Joatinga, encontrei um Justino soturno e ainda visivelmente abalado com a quase tragédia ocorrida naquela tarde de sábado. Dois pintores que trabalhavam ali quase foram estraçalhados pelos cães de guarda que Justinho mantinha para a segurança da casa. Uma ambulância levou os homens ao hospital Miguel Couto, onde se confirmou a gravidade dos ferimentos. Seguimos praticamente calados no trânsito engarrafado até o Maracanã.

Adentramos o gramado do maior do mundo, onde tínhamos ingressos VIP. Lena postou-se bem à frente do palco, armado no lado do campo conhecido como “a trave do Barbosa”, alusão à derrota para o Uruguai na final da Copa de 50. Fiquei do seu lado para protegê-la da turba ensandecida. O vocalista Gene Simmons, com sua maquiagem grotesca, vomitava uma geleca verde de aparência asquerosa sobre a plateia, fomos contemplados com alguns chuviscos também. Valéria assistia de perto com um grupo de amigas.

Logo após a morte de Justina Martins, esta placa que foi colocada na redação da Manchete em homenagem
ao diretor que criou a revista no seu formato histórico. Uma semana depois, foi retirada.

Depois de algum tempo, procurei o Justino. Custei a encontra-lo, no seu elegante blazer que nada tinha a ver com tudo aquilo. Recostado junto às grades que cercavam o gramado, pasmem – o Justino dormia. De pé. Um cansaço descomunal parecia ter tomado conta do seu corpo, já àquela altura minado pelo câncer, que o levaria dois meses depois.


terça-feira, 19 de novembro de 2019

O primeiro Zumbi a gente nunca esquece • Por Roberto Muggiati

Monumento a Zumbi dos Palmares, na Praça Onze, Centro do Rio. Reduto dos negros, berço do samba e
o bairro que recebeu imigrantes judeus a partir do final do Século  19. Foto: Prefeitura do Rio de Janeiro
Não há como esquecer. O Dia da Consciência Negra, na data do aniversário da morte de Zumbi dos Palmares, foi comemorado pela primeira vez no Rio de Janeiro em 20 de novembro de 1995.  O feriado municipal, decretado pelo prefeito Cesar Maia, foi cercado de controvérsias, mas acabou respeitado naquela segunda-feira chuvosa em que a Manchete em peso compareceu ao enterro de Adolpho Bloch no Cemitério Israelita de Vila Rosali, em São João de Meriti.

Internado num hospital de São Paulo, Adolpho morreu nas primeiras horas do domingo, 19 de novembro de 1995, Dia da Bandeira. “O Rei morreu”, era o pensamento na cabeça dos jornalistas que foram aguardar o corpo para o velório no saguão de entrada do prédio da Bloch no 804 da Rua do Russell. O clichê imemorial não foi completado com o “Viva o Rei!” Adolpho não deixava herdeiro à sua altura. O mais afoito candidato, Oscar Bloch Sigelmann, morrera na véspera do Carnaval daquele ano. Num ano ruim para os Bloch, em agosto, foi a vez da irmã de Adolpho, dona Bela, mãe do Jaquito.

Naquele domingo, fui convocado para dar depoimentos à TV sobre Adolpho, principalmente na Rede Manchete. Ainda ficamos um tempo na redação, esboçando o fechamento da revista naquela segunda-feira – seria quase uma edição especial sobre Adolpho.

Chovia torrencialmente. Fizemos a longa viagem de trinta quilômetros até Vila Rosali – Lena e eu – no carro do casal Norma e Murilo Melo Filho, com direito a motorista particular. A presença de Xuxa (que ganhara fama e acesso à TV Globo graças à Manchete), Angélica, Cristiana Oliveira da novela Pantanal e outras celebridades atraiu a tietagem local, mesmo debaixo do aguaceiro. Para conseguir uma visão melhor, havia gente sentada até no muro do cemitério. Uma pequena multidão de fieis se acotovelava junto ao túmulo de Adolpho Bloch na hora do enterro.

Procurando um ângulo melhor, o fotógrafo Nilton Ricardo subiu num túmulo vizinho e Jeová o fulminou no ato pelo sacrilégio com um tombo quase fatal – Nilton se safou agarrando-se a uma lápide, que cedeu, levando consigo na queda uma meia dúzia de outros fotógrafos.

Do meu lado, Arnaldo Bloch, sobrinho-neto de Adolpho, me explicava o simbolismo da linha férrea que margeia o cemitério. Quando um corpo acaba de ser enterrado passa sempre um trem. Não deu outra: mal os despojos de Adolpho Bloch eram cobertos pela tampa da sepultura, um trem se deslocou lentamente no horizonte como uma longa cobra.

Voltamos de carona com o Mauro Costa, chefe de reportagem da televisão. Ainda chovia forte.

Às dezenove horas começamos o fechamento da revista, que varou a noite. Na capa, um belo retrato de Sérgio Zalis do homem que havia criado a Manchete havia 43 anos.

Os cariocas mais afortunados gozavam as últimas horas de lazer que lhes foram conferidas, pela primeira vez, por Zumbi dos Palmares.



FOTOMEMÓRIA DA REDAÇÃO
Hall do prédio do Russell, manhã de 20 de novembro de 1995. Já com a missão de fechar o número especial da Manchete em homenagem ao seu fundador, parte da redação fez uma pausa para receber o corpo de Adolpho Bloch, transladado de São Paulo. Na foto, João Silva, Regina, Orlandinho, Alberto, José Carlos, Muggiati, Cesar, Ney Bianchi, Esmeraldo, Paulinho e Pinto.

domingo, 16 de junho de 2019

Franco Zefirelli foi personagem da ópera da Rua do Russell

Zefirelli em 1987, com Bambina: passageiros da Kombi de reportagem da Manchete.
Foto de Rauf Tauile. Reprodução

Em 1978, Manchete levou Zefirelli ao Theatro Municipal. Foto de José Moure. Reprodução

O diretor ficou fascinado pelo Municipal onde, um ano depois, encenou A Traviata.
Foto de José Moure. Reprodução

Zefirelli na mesa de luz da redação, ao lado Roberto Mugiatti e Carlos Heitor Cony. O diretor era figurinha fácil na Manchete onde ganhou um apelido irreverente e para consumo interno: "Tia Zefa". 

por Ed Sá 

Durante alguns anos, Franco Zefirelli foi figurinha fácil nos corredores do prédio da Manchete, no Russell.

Essa aproximação se deu a partir de 1978, quando Adolpho Bloch foi presidente da Funterj e convidou o diretor o italiano para montar A Traviata no Theatro Municipal. Desde então, sempre que vinha ao Rio, Zefirelli visitava a Manchete.

No livro Aconteceu na Manchete - as histórias que ninguém contou, a coletânea lançada por jornalistas e fotógrafos que trabalharam na Bloch, Roberto Muggiati conta que uma das vindas do cineasta provocou um pequeno incidente no Russell. "A nova mulher de um grande empresário do ramo editorial italiano tinha pretensões de tornar-se diva e veio ao Rio para assediar Zefirelli, que rodava pela cidade com sua cadelinha Bambina na Kombi da reportagem da Manchete. A aspirante a Callas conseguiu finalmente um teste, mas precisava de um piano para ensaiar. Adolpho, que se encantou menos pela voz da moça do que pelo "conjunto da obra", pôs à sua disposição o piano do décimo andar, um Steinway de cauda. Era um pretexto para encontrá-la a sós, ao redor do piano, onde havia uma profusão de almofadas e sofás. Deu instruções precisas para que o avisassem quando a jovem chegasse ao prédio. O chefe da portaria na época era um português baixote, seu Álvaro, um dos muitos enjeitados da Revolução dos Cravos que Adolpho adotou. Apelidado de Topo Giggio, Álvaro, metido a conhecer mil e uma línguas, não teve dúvidas quando chegou uma gringa falando arrevesado: mandou-a subir e avisou Adolpho. Ao chegar ao décimo andar, ele teve um choque: a estrangeira era uma professora sessentona de Milwaukee que queria conhecer a Pinacoteca de Arte Brasileira da Manchete no segundo andar. A gafe valeu ao Topo Giggio a destituição do posto", escreveu o ex-diretor da revista Manchete.

Voltando a Zefirelli, ele não frequentava apenas os corredores do prédio, como era personagem recorrente de muitas matérias na revista, especialmente entre 1978 e 1987.

Para os redatores da Manchete, em tempos nada politicamente corretos, o diretor de "Romeu e Julieta", "Jesus de Nazaré", "Amor sem Fim", entre outros filmes, era a Tia Zefa, Claro que esse apelido era pronunciado apenas nas "internas" - "lá vem Tia Zefa", "cadê o texto da Tia Zefa",  "Adolpho que ver as fotos da Tia Zefa"...

O florentino Franco Zefirelli morreu ontem, em Roma, aos 96 anos, sem desconfiar da alcunha caroca e muito menos de que os loucos bastidores da Manchete que frequentou teriam rendido a ópera que ele não fez.

segunda-feira, 10 de junho de 2019

Alberto Dines, nossa longa vida pelas Redações dos jornais e a histórica primeira página do JB, sem manchete. Por Nelio Barbosa Horta

Alberto Dines no front jordaniano, em 1967, quando cobriu para Manchete a guerra no Oriente Médio.

Em 1962, no almoço de comemoração de um ano da revista Fatos & Fotos, ao lado de Austregésilo de Athayde, Juscelino Kubitschek e Adolpho Bloch


por Nelio Barbosa Horta 

Eu achava que o Dines ia chegar aos 100 anos. Era uma pessoa extremamente saudável. Extrovertido, criativo, feliz ao lado de sua companheira, a jornalista Norma Curi, que também foi do JB nos anos dourados. Confesso não pensei que nos deixaria antes do centenário, trazendo muita tristeza a todos que tiveram, como eu, a honra de trabalhar e conviver com ele na sua longa e brilhante trajetória pelos jornais e revistas brasileiros.

Conheci o Dines nos anos 50, no antigo Diário da Noite, jornal verde, cujo secretário era o Carlos Eiras (só os mais antigos se lembrarão dele), jornal do Paulo Vial Corrêa, do Austregésilo de Athayde, do Fernando Bruce, do Brício de Abreu, (o Briabre), do Marcelo Pimentel, do Nelson Rodrigues e que ficava na Rua Sacadura Cabral, 103.

Como o jornal enfrentava grandes dificuldades financeiras, apesar da grande equipe, o Dines foi contratado e transformou o DN verde em tabloide, numa desesperada tentativa de recuperá-lo. Conseguiu, já que houve momentos em que o novo tabloide triplicou a vendagem, coisa rara na época.

Deixando o DN, Dines foi ser editor da Fatos&Fotos, revista de Bloch Editores, onde seu brilhante espírito de liderança e competência se fez sentir, já que ele chegou a balançar e a concorrer com a tiragem da revista mais importante da Bloch, a Manchete. Naquela redação havia muita gente competente, o Macedo Miranda, o Ney Bianchi, o Itamar de Freitas, o Paulo Afonso Grisoli. Na Arte, o Ézio Speranza, eu e o Laerte Gomes. Trabalhei no Diário de Notícias, que tinha o José Carlos Oliveira, o Luiz Alberto, o Ascendino Leite, o Teixeira Heizer e tantos outros. Depois trabalhei na Folha da Guanabara, com o Rennée Deslandes.  Passei pelo Mundo Ilustrado, onde conheci o Hugo Dupin, pai do Fábio Dupin. Mais tarde, Tribuna da Imprensa, com o Hélio Fernandes e o Guimarães Padilha, em plena ditadura. Também trabalhei na precária cenografia da TV Tupi. Meu chefe era o Carlos Thiré, casado com a Tônia Carreiro e pai do Cecil Thiré. Quando saía, por volta das 23 horas, ia, a pé tranquilamente até o Largo de São Francisco pegar o bonde São Januário que me levava até São Cristóvão, onde morava. O Aterro ainda não existia...

Voltei a trabalhar com o Dines em 1º de maio de 1965, Dia do Trabalho, naquele lindo prédio da Av. Rio Branco, quando ele me convidou para o JB, para me juntar à equipe que ia fazer da edição de  domingo um “jornal diferente”, segundo suas palavras. Não havia vaga na Arte e eu fui ser repórter- especial . Meu chefe era o Aluizio Flores, o “Amiguinho” lembram dele?

 Como o JB estava em grande fase de expansão, o jornal se dava ao luxo de “exportar” profissionais, o Dines me mandou para a Gazeta do Povo, de Curitiba, para uma reestruturação gráfica e editorial. Fiquei lá por três meses. Muito frio, 16 horas de ônibus pela viação Penha, mas acho que o nosso trabalho foi reconhecido, apesar do jornal ter saído, naquele período, com a “cara do JB”.

Na volta para a Redação do JB encontrei grandes profissionais e editores: Wilson Figueiredo, Oldemário Touguinhó, Luiz Orlando Carneiro, Carlos Lemos, Gazzaneo, Joaquim Campelo, Humberto Vasconcelos, Macksen Luiz, Zózimo, Zuenir Ventura, Luiz Paulo Horta, Fleury, Regina Zappa, Bella Stall, Ana Arruda, Iesa Rodrigues, Rose Esquenazi, Sandra Chaves, Celina Côrtes, Léa Maria e tantos outros e outras, todos brilhantes profissionais.

Em 2004, participei da equipe que ganhou o último Prêmio Esso do JB com a 1ª página: Ministro Berzoíni: “ Eu odeio filas”. Na equipe, o Augusto Nunes, o Otávio Costa, o Marquinho e eu.

 Como eu trabalhava de dia em Bloch Editores só podia chegar ao JB à noite, às 18 horas, eu era o “fechador”, responsável pelas edições diárias. Eu ficava na primeira página junto com o copy-desk. Não tinha hora para sair, mas meu esforço era compensado porque o jornal, naquela época, já estava na Av. Brasil, próximo da subida da ponte. Eu morava em Niterói e subia a ponte rapidamente. Eu tinha uma Brasília que vivia enguiçando, quase sempre no vão central. Os funcionários já me conheciam e diziam: “outra vez seu Nelio...”, uma festa!

 Passei por todos os cadernos do JB, especialmente o Caderno Especial, cujo fechamento era às sextas-feiras, de madrugada. Era um super-pescoço e várias vezes eu amanhecia no jornal, esbarrando nos que chegavam para “abrir” as edições do fim-de-semana. Foram 46 anos, ininterruptos, até 2011, no Rio Comprido, já na edição digital.


A antológica capa do JB, em 12 de setembro de 1973
A famosa e histórica primeira página do SalvadorAllende ficou decidida bem tarde. O Dines e o Lemos já tinham deixado a Redação e a ordem da censura para que o jornal não desse manchete foi recebida pelo Maneco (Manoel Bezerra), que era o secretário da noite. O Maneco ligou para o Dines avisando da nova determinação da censura. O Dines chegou rapidamente à Redação e disse:
“-Vamos obedecer à censura, a página sairá sem manchete”.

A ideia da página sem manchete foi dele. Como o Avellar, (José Carlos Avellar) que era o diagramador oficial da primeira página já tinha saído, a “bomba” estourou na minha mão. Confesso que foi a página mais fácil de se fazer. Sem manchete, sem foto, apenas com o “L” dos classificados. Antes de tirar a manchete que seria, ‘Golpe derruba e mata Allende’... O texto, acho que foi a editoria internacional que mandou uma parte (Humberto Vasconcelos, que estava em Santiago) e o Lutero, que escreveu o restante, com a supervisão do Dines, e do Lemos, que àquela altura já haviam voltado ao jornal. Infelizmente, talvez tenha sido aquela página o “estopim” para a saída do Dines do JB.

Deve-se a Nelson Tanure a manutenção do jornal, primeiro impresso e depois “digital” e a Omar Catito Peres o relançamento, há pouco mais de um ano, do grande JB.

Agora, é só saudade. Dines, companheiro de tantas trincheiras, de tantas lutas, o mais completo jornalista do século passado, nos deixou aos 86 anos, em 22 de maio de 2018, há um ano.

Deus o abençoe e até qualquer dia.

quinta-feira, 15 de novembro de 2018

Jornalismo - Eurico Gaspar Dutra dava bolo em entrevista. Literalmente. Marco Aurélio Borba, ex-repórter da Manchete, foi uma das 'vítimas'...

José Maria dos Santos escreve no Jornalistas & Cia sobre Marco Aurélio Borba. Ambos foram repórteres da revista Manchete.
Atualmente, alguns entrevistados quando se negam a falar mandam apenas um "não" via Whatsapp. Isso se não mandarem o jornalista para a p.q.p, como vídeos registram. Nem sempre foi assim. José Maria conta como Eurico Gaspar Dutra ofereceu ao Borba uma mesa farta de chá, pães, bolo, tortas e sucos chá apenas para dizer que não daria entrevista. Veja, abaixo;




Ou clique na primeira imagem para ampliar

 a matéria completa.

quinta-feira, 27 de setembro de 2018

segunda-feira, 10 de setembro de 2018

HÁ 50 ANOS: A GRANDE AVENTURA DO LANÇAMENTO DA VEJA • Por Roberto Muggiati

SORRIAM, O MUNDO É DE VOCÊS • A ideia deve ter sido do próprio capo, Victor Civita, que assinou pomposamente o texto da Carta do Editor ao lado da foto da redação publicada no número 1. Foi convocado o chefe de fotografia da Abril, o excelente Lew Parrella, para registrar a foto para o álbum de família da primeira equipe de Veja. Algumas pinceladas sobre o que aconteceria com alguns que figuram aí e outros que chegariam pouco depois. O gaúcho Caio Fernando de Abreu, tímido de morrer, completou vinte anos no dia da data de capa da primeira Veja. Trocou o jornalismo pela literatura, morreu cedo e se tornou talvez a figura cult mais destacada dentre todos nós. O gaúcho José Antônio Dias Lopes foi o último a sair (não sei se apagou a luz), 22 anos depois, quando era editor de religião e correspondente da Veja no Vaticano. Criou a revista Gula e se deu bem. Eu, com os exageros capilares da época, postei-me coerentemente na extrema esquerda da primeira fila. Tornei-me o editor de Manchete que mais tempo durou no cargo. O paulista Tão Gomes Pinto veio dirigir a Manchete em 1996 e foi, talvez, o editor que menos tempo ficou no cargo, sorte dele... Mino Carta continua um grande jornalista, impávido com suas adoráveis contradições. Elio Gaspari e Dorrit Harazim conheceram-se na redação e continuam suas carreiras vitoriosas: ele se tornou o maior historiador da ditadura militar no Brasil, ela ganhou recentemente o Prêmio Maria Moors Cabot. Harry Laus, que não teve reconhecimento literário enquanto viveu – chegou a ser dono de uma birosca de loteria esportiva da Caixa – tornou-se um autor cada vez mais prestigiado no exterior. Bernardo Kucinski escreveu sobre o assassinato da irmã pelos carrascos militares e, mais recentemente, aderiu em definitivo à ficção. Henrique Caban trocou a Veja pela Bloch, onde foi assistente de Samuel Wainer no semanário Domingo Ilustrado, que durou um ano, quando retomou a carreira no Globo. Enio Squeff destacou-se na literatura, na música e nas artes plásticas. Sylvio Lancelotti herdou um hotel na Itália, tornou-se chef e crítico gastronômico e ainda comentarista de jogos do campeonato italiano pela TV. Paulo Cotrim também se tornou chefe e crítico de culinária. Tárik de Souza, que foi meu repórter na editoria de música, virou o dono do pedaço e é um dos mais sólidos comentaristas sobre a MPB, com vários livros publicados. Marcos Sá Correa, jovenzinho, começou sua brilhante carreira na Veja, lembro o Mino comentando: “Ele tem uma cara boa...” Muitos já morreram, de outros nunca mais ouvi falar. Encerro com uma vinheta trágica. Nello Pedra Gandara, pesquisador da minha editoria, foi um inadaptado na Abril e depois na Bloch, queria outras coisas do mundo. Um dia encontrou o seu caminho: começou a criar cachorros, montou um canil bem sucedido, depois outros, ficou finalmente bem e feliz da vida. Mas tudo terminou bruscamente quando Nello morreu atropelado ao atravessar uma destas avenidas que são o orgulho da Pauliceia. Foto Lew Parrela


Clique na ilustração para ampliar. Reprodução/Esquina

POR ROBERTO MUGGIATI

Foi o melhor dos tempos, foi o pior dos tempos – a Era das Luzes, a Era das Trevas. Foi o ano da maior aventura do jornalismo brasileiro. Na segunda-feira, 9 de setembro de 1968 (com a data de capa do dia 11), saía o primeiro número da revista Veja.

Numa época de grandes lançamentos espaciais, a operação para levar às bancas a revista semanal de informação da Abril lembrava o planejamento e logística da NASA. Na Carta do Editor, em página dupla, ao lado da lendária foto da equipe diante das máquinas que imprimiam a revista, o próprio Presidente, Victor Civita, cobrava o pênalti: “Selecionamos entre 1.800 universitários de todos os estados e realizamos um inédito Curso Intensivo de Jornalismo. Com 50 destes moços e outros tantos jovens ‘veteranos’, formamos a maior equipe redacional já reunida por uma revista brasileira.”

Aos 30 anos, com 16 de jornalismo, eu fui um daqueles “jovens ‘veteranos’” da grande empreitada. Comecei a carreira em 1954, na Gazeta do Povo de Curitiba. Em 1960 fui estudar jornalismo em Paris, em 1962 entrei para o Serviço Brasileiro da BBC de Londres. Em 1965, comecei na Manchete, no Rio (ainda em Frei Caneca) como repórter especial; em março de 1968, a Bloch me ofereceu o cargo de editor de Pais e Filhos, uma franquia da Eltern alemã. Eu não tinha filhos e queria era fazer jornalismo de verdade, não uma revista mensal de fraldas e papinhas. Além do mais, só teria salário de editor lá pelo fim do ano, depois que a revista fosse lançada, e com uma condição: se a revista vendesse bem... Era muita incerteza para minha pobre cabecinha.

E havia mais em jogo. Já em 1967 falava-se muito numa revista Veja, que seria a semanal de informação da editora Abril. Numa ida a São Paulo, procurei o Alessandro Porro – figura icônica da empresa, diziam até que seria filho do próprio Victor Civita. Porro me garantiu: “Quando chegar a hora você será chamado.” As contratações para a Veja provocaram um verdadeiro terremoto no mercado de trabalho. A Manchete, como líder de vendas entre as semanais, foi um dos celeiros mais visados pelos caçadores-de-cabeças da nova publicação. Eram curiosos os telefonemas da sucursal carioca da Abril para a redação da Bloch: chamavam o Paulo Henrique (Amorim), que atendia a ligação, falava rapidamente e passava o telefone para o Lucas (Mendes), que por sua vez o passava para o Nilo (Martins) e assim sucessivamente. Adolpho Bloch ficava injuriado de ver aquela evasão do seu plantel debaixo do seu próprio nariz, mas tudo se fazia dentro das leis clássicas do capitalismo: jornalistas de esquerda (quase um pleonasmo) respondiam à lei da oferta e procura, atrás de melhores salários.

Peguei a ponte aérea e fui conversar em São Paulo com o futuro diretor de Veja, Mino Carta. Durante um cozido no Ca’ d’Oro, convidou-me para ser um dos editores da revista, dividida em quatro grandes fatias. Coube-me a fatia mais suculenta, a editoria de Artes e Espetáculos – imaginem, num ano em que a cultura brasileira e mundial ferviam.

O modelo da Veja era a semanal de informação americana Time, fundada em 1923, que oferecia uma visão do mundo segmentada por assuntos. O texto da Time pretendia ser informativo, claro e elegante, escrito numa linguagem uniforme, sem crédito ao autor, para dar a impressão de que a revista era redigida por uma única pessoa (quem sabe o próprio Deus?) Transplantar tal modelo para o Brasil seria o desafio da Veja – e seu grande desastre. O absurdo inicial foi copiar a grade funcional da Time e preencher os escaninhos com a nata do jornalismo brasileiro. A Veja começou com um total de 157 jornalistas, entre editores, redatores, repórteres, fotógrafos e correspondentes.  A Time só chegara àquela estrutura após 45 anos de hesitações e adaptações: Veja também teria de evoluir dentro da realidade do país e da época, aprendendo com seus erros Seria – e foi – um processo muito doloroso.

A Editoria de Artes e Espetáculos tinha seis editores assistentes, dos quais só um foi escolhido por mim, o de Cinema, Geraldo Mayrink, mineiro com experiência das redações cariocas, cinéfilo e jornalista cultural, que correspondia plenamente ao perfil de redator buscado pela “proposta” da Veja.

Os outros editores já estavam lá quando cheguei, escolhas pessoais do próprio Mino: Paulo Cotrim (música), Paulo Mendonça (teatro), Luiz Gutemberg (rádio e TV), Leo Gilson Ribeiro (literatura) e Harry Laus (artes plásticas), esse indicado por Leo Gilson. Os critérios? Cotrim fora o dono do João Sebastião Bar, berço da bossa nova em São Paulo. Mendonça era aparentado com a família Mesquita, do Estadão, onde trabalhara o pai de Mino, também jornalista. Leo Gilson, doutor em Literatura pela universidade de Heidelberg, era o melhor amigo da tia de Mino, Bruna Becherucci, que também colaborava em Veja fazendo resenhas literárias. Nenhum deles tinha qualquer vivência do texto jornalístico: eram críticos acadêmicos sem poder de comunicação com o grande público. Cotrim sequer escrevia; muitos anos depois, encontraria sua vocação como crítico de gastronomia. Cada editor tinha dois pesquisadores (o nome que a Abril dava aos repórteres) – daqueles 50 jovens universitários do país inteiro selecionados por Veja. E cada editoria tinha colaboradores para escreverem resenhas, dois em São Paulo e dois no Rio de Janeiro. Ou seja: eu, os seis editores, os doze pesquisadores, mais 24 colaboradores, a equipe da editoria de Artes e Espetáculos totalizava 43 profissionais, mais um carona, o famigerado José Ramos Tinhorão: já na fase dos números zero, ele fora rejeitado por outras editorias e desovado na nossa. A última coisa que a Veja ia querer era o Tinhorão escrevendo sobre música e demolindo a bossa e a tropicália com seus dogmas do materialismo dialético. Foi posto a escrever a seção de Cartas do Leitor.

Além de planejar minha fatia cultural da revista, que nunca ultrapassava as dez páginas – vivíamos um momento altamente politizado, embora a cultura também participasse dele – eu tinha que reescrever praticamente todos os textos (o que gerava atritos terríveis) e me comunicar com aqueles 24 colaboradores que, sem espaço, invariavelmente ficavam sem escrever. Aquilo era um imenso desperdício de tempo, deles e meu. No ano e meio que passei em Veja, só tive oportunidade de publicar uma resenha do grande José Rubem Fonseca, sobre o filme As aventuras de Tom Jones.

Numa época sem fax e, nem falar, e-mail, o principal meio de comunicação era o obsoleto telex, o que tornava um verdadeiro suplício o fechamento das reportagens de capa. Segunda-feira de manhã, mal refeitos do esforço de fechar mais uma edição, Mino Carta reunia os editores em sua sala. Comentávamos o número que acabava de ir às bancas e discutíamos a pauta do seguinte. Traçadas as prioridades, o chefe de reportagem Sérgio Pompeu iniciava a faina desesperada de disparar os pedidos para as sucursais.

O redator destacado para escrever o texto da matéria de capa passava três dias torturantes sem fazer nada. Os textos só começavam a chegar ao apagar das luzes, lá pelo fim da tarde de quinta-feira, quando jorravam sobre a mesa do pobre coitado vários metros de folhas de telex, além de folhetos, jornais e revistas enviados por despacho urgente. Não havia tempo material para digerir tudo aquilo e escrever um texto decente, o que aumentava o desgaste físico e mental do redator. O trabalho de fechamento se prolongava da sexta até o amanhecer de sábado na paisagem sinistra da Marginal do Tietê, segundo Mino “lamaçal fétido em movimento preguiçoso, rio morto prova de muitas coisas más. Se o lago de Tiberíades fosse igual ao Tietê, a caminhada de Cristo sobre a água não seria milagre.”

Uma palavra sobre o espaço físico onde se fazia a Veja. No começo de 1968, a Abril juntara suas redações num prédio construído sobre a própria gráfica, na Avenida Otaviano Alves de Lima, 800, na Marginal do Tietê, tendo mais aos fundos a Freguesia do Ó. A redação da Veja ocupava o oitavo e último andar. Mino Carta e os editores tinham salas fechadas na frente, com direito à abominável paisagem do rio poluído. Os editores assistentes, redatores e repórteres ocupavam compartimentos quase fechados, as execráveis “baias” – mais um fator a truncar a comunicação em todos os sentidos. Não era uma redação “aberta”, com fileiras de mesas como nos jornais e na maioria das revistas, o que promovia interação constante entre os redatores. Ao longo do corredor, do lado de fora das salas dos editores, havia baterias de datilógrafas que “preparavam” os textos para a gráfica, redigitando-os em colunas de 37 batidas, a medida da coluna tipográfica. O editor, depois de reler, corrigir ou até reescrever o texto do subeditor, tinha ainda de rever (e rubricar) as laudas finais batidas à máquina por mocinhas que não tinham a menor ideia do que estavam datilografando.

O número zero da Veja

A primeira capa

O lançamento de Veja foi feito com uma megacampanha publicitária que culminou com a transmissão em rede nacional pela TV, às 20 horas de domingo, de um filme de Jean Manzon sobre a revista, tão bombástico que as pessoas correram às bancas na manhã seguinte esperando comprar a maravilha das maravilhas. Os 700 mil exemplares lançados em todo o Brasil esgotaram em poucas horas. A decepção foi imensa. Acostumados ao arrojo visual da Manchete e ao jornalismo vivo da Realidade, a vitoriosa mensal da Abril abortada em função dos investimentos na Veja – os leitores rejeitaram de saída a revista de formato pequeno, quase toda em preto-e-branco e com excesso de texto. Até o nome da revista era inadequado, convidava a “ver” mais do que a “ler”, por isso ela circularia muito tempo com o logotipo ambíguo de Veja e Leia.


Algumas capas, com chamadas em paulistês, como Ah, Jaqueline! (quando a viúva de Kennedy fez um contrato nupcial com Onassis), foram alvos de chacota.

O segundo número de Veja baixou a tiragem para 500 mil exemplares; o terceiro, para 250 mil; o quarto para 100 mil e o quinto para 50 mil.


Quatro meses depois, a vendagem chegava ao fundo do poço: apenas 30 mil exemplares no país inteiro. Foi a tiragem da capa de 15 de janeiro de 1969, uma produção tosca e óbvia que mostrava um executivo de terno carregando uma barra de gelo debaixo braço, com a chamada QUE VERÃO! (Na minha memória idiossincrática eu jurava que a chamada era UFA, QUE CALOR!)

Guardo duas ou três boas lembranças da minha temporada na Veja.




• Uma matéria de duas páginas no número 10 (13/11/68) intitulada Existe algo de concreto nos Baianos, mostrando as relações entre os tropicalistas e os poetas neoconcretos, incluindo um quadro comparativo com as letras da Tropicália e a poesia dos concretistas.


• A reportagem de capa do número 38 (28/5/1969), quando Glauber Rocha ganhou em Cannes o prêmio de Melhor Diretor com o filme O Dragão da Maldade contra o Santo Guerreiro, ou Antônio das Mortes. Não só era raro uma matéria cultural emplacar capa na Veja, como Mino Carta creditou a mim o texto em sua Carta ao Leitor. Quando preparava o texto com antecedência – aguardando a decisão de Cannes – recebo a visita insólita em minha sala da Marginal do Tiete de ninguém menos do que o próprio Glauber. Numa longa conversa telúrica acompanhada de muitos gestos, ele me deu muitas informações de cocheira que enriqueceriam o texto. Como esta: “Quando filmavam Deus e o Diabo na Terra do Sol, no interior da Bahia, Glauber e Maurício subiam um morro íngreme discutindo sobre Deus. De repente um pé de vento derrubou a câmara, que rolou alguns metros morro abaixo. Mas o equipamento ficou intato. Maurício do Valle, que é muito religioso, falou: ‘Deus existe.’ Glauber respondeu: ‘É possível...’”

• E a cobertura da morte da mulher de Roman Polanski, na sua casa de Los Angeles. Sharon Tate, com o filho na barriga (a quinze dias de nascer), três amigos e um estudante amigo do caseiro, foram barbaramente assassinados por um bando de fanáticos que seguiam as ordens do guru do mal Charles Manson. Por exigência do Mino, Geraldo Mayrink, escreveu a matéria em forma de roteiro cinematográfico. O texto, um roteiro perfeito publicado no número 50 (20/8/1969), estava pronto para ser filmado.

Veja surgiu num ano crucial do século 20, um tempo de confrontos violentos e mudanças radicais que moldariam as décadas seguintes. No caso do Brasil, mudanças para pior. Em dezembro, o AI-5 instalou a repressão total no país, obrigando a resistência à ditadura militar a cair na clandestinidade.
À minha modesta maneira, como escritor, eu vinha fazendo propaganda de esquerda.



O lançamento do livro Mao e a China em São Paulo, dezembro de 1968. Foto: Arquivo Pessoal R.M.

Uma semana antes do AI-5, lancei em São Paulo o livro Mao e a China, uma declaração de amor ao comunismo chinês. O livro, uma incitação à luta armada, passou a aparecer menos nas vitrinas das livrarias do que nas exposições de material subversivo apreendido pelo exército. Quando o guerrilheiro Carlos Lamarca morreu fuzilado em 1971, no sertão da Bahia, os jornais do país inteiro publicaram trechos de suas cartas para a companheira Iara Iavelberg. “12 de julho: Lendo Mao e a China, de Roberto Muggiati, me impressiono cada vez mais em tudo e vejo a necessidade urgente da Revolução Cultural dos quadros de vanguarda.” Mao e a China foi o último livro que Lamarca leu. Estranhamente, em momento algum a ditadura veio bater à minha porta. Com um forte sentimento de rejeição, eu me autointitulei O Homem Invisível dos Anos de Chumbo.

Só tempos depois matei a charada. Em 1969 voltei para a Manchete e para o Rio. Tivesse ficado em São Paulo, a coisa seria bem diferente. Num documentário sobre Vladimir Herzog, vi colegas meus da Veja e da Realidade – ideologicamente autênticos sacristães comparados a mim – que foram presos e torturados nos porões do DOI-CODI em São Paulo. Eu tinha tudo a ver com Vlado: nascemos no mesmo ano e, quando deixei o Serviço Brasileiro da BBC em Londres, em 1965, ele foi ocupar a minha vaga. A volta para o “balneário da República” – quem diria? – salvou a minha vida.