Mostrando postagens com marcador Roberto Muggiati. Mostrar todas as postagens
Mostrando postagens com marcador Roberto Muggiati. Mostrar todas as postagens

segunda-feira, 6 de novembro de 2023

Questões hospitalares - VINTE NOITES SEM DORMIR - Jornalista de 85 anos transforma sua fratura de fêmur numa experiência de vida enriquecedora. Por ROBERTO MUGGIATI


Brazilian Capira. Lena e Roberto Muggiati à maneira do American Ghotic. Arte de Roberto Mendonça Muggiati sobre
foto de Cláudia Alves.
 
Muggiati no Hospital Miguel Couto. Como
no blues de Duke Ellington, "pedras na minha cama". Foto: Beatriz Suassuna


O texto de Roberto Muggiati, aqui reproduzido ("Meu fêmur, meu sono"),
está publicado na Revista Piauí,
edição de novembro de 2023, número 206.


"Para combater minha resistência à página em branco,
imprimi numa folha a4, repetida em quinze linhas, a frase
'O escritor escreve'. Foto de Cláudia Alves

A privação do sono é uma das piores torturas. Vemos nos filmes antigos mocinhos e durões com uma lâmpada esfregada na cara para revelar um segredo ou confessar uma falta. Resistem por algum tempo, mas acabam sempre cedendo.

Não há lugar mais barulhento e iluminado do que uma enfermaria de hospital. Deixe logo na entrada suas esperanças de um sono reparador: não dormirá nunca. Como seu organismo não é de ferro, você terá pequenos lapsos de cochilo – ultrarrápidos, embora pareçam durar uma eternidade. O que você faz então? Ao contrário do ditado, a invenção é que é a mãe da necessidade. E cada um inventa como pode. Mas vamos logo ao clássico quem-o quê-quando-onde et cetera.

No quarto de dormir no meio da noite quebrei o fêmur. Ou o fêmur quebrou sozinho. No começo eu nem sabia que era o fêmur. Acordei no chão, do lado da cama, estatelado como um saco de batatas podres. Não conseguia mover a perna direita, que doía muito. Gritei de dor e pânico, acudiu Lena, minha mulher. Com imenso esforço conseguimos colocar a perna – reta e rígida como se estivesse entalada – sobre meu catre de solteiro. 

Liguei para o 192, o Samu atendeu prontamente. Entreouvi a conversa da enfermeira-maqueira com a central. Ela ripostou: “Mas o Getúlio Vargas fica no Irajá! Estamos na Rua das Laranjeiras...” E, pouco depois, para mim: “Vamos levar o senhor para o Miguel Couto. Já estamos a caminho da sua casa.”

Estremeci ao ver como o meu destino podia ser desgovernado por um socorro inepto.

"Tive de ser transportado no ar, de mão em mão, por porteiros e faxineiros em fila indiana"

Com muita dificuldade me retiraram da colmeia de 60 m² que ocupo no primeiro andar do bloco de apartamentos dos fundos (“Mas é uma casa de boneca!”, exclamou meu personal de computador na sua primeira visita.) Tive de ser transportado no ar, de mão em mão, por porteiros e faxineiros em fila indiana ao longo dos corredores estreitados, tetos rebaixados, portas arredondadas e outros caprichos arquitetônicos da proprietária original. Ao som da sirene da ambulância eu ia vendo o céu azul perfeito daquele começo de manhã do 15 de fevereiro desfilar sobre minha cabeça – Rua das Laranjeiras, Cosme Velho, Lagoa, Hípica, Hipódromo da Gávea, com suas amendoeiras ainda floridas. Os pavilhões do Hospital Miguel Couto estão encaixados dentro dos muros do Hipódromo, depois da primeira curva oposta da pista de corridas. A ambulância encostou na entrada da emergência e a maca me conduziu até a Sala de Trauma onde Lena me acompanhou para o cadastro de triagem. Começou aí uma pequena odisseia que acabaria exigindo três viagens ao raio x para atender aos pedidos do médico.

Os cavalinhos correndo, e nós, cavalões, morrendo. Penso no poema de Manuel Bandeira, Rondó do Jockey Club, de 1936: “Os cavalinhos correndo,/E nós, cavalões, comendo…/Tua beleza, Esmeralda,/Acabou me enlouquecendo./Os cavalinhos correndo,/E nós, cavalões, comendo.../O sol tão claro lá fora/E em minhalma – anoitecendo!” 

Sua lembrança me levou de volta ao mesmo ponto geográfico onde, em tempos mais amenos, nos últimos anos do Rio como capital federal, eu assistia aos cavalos fazendo o cânter no paddock. Nada desse desvairado giro em que um maqueiro irresponsável me abandonou no corredor da tomografia, enquanto me chamavam para o raio x em outra ala. Fiz forfait. Quando me devolveram à Sala de Trauma, o médico berrou: “Sacanagem! Não fizeram o raio x, só a tomografia!” Isso não teria acontecido se avisassem à Lena que, como minha responsável, não só poderia, mas deveria me acompanhar ao longo dos exames. 

Levado de novo ao raio x, teria de voltar ainda outra vez para uma chapa de perfil que esqueceram de fazer. A essa altura eu era dominado por uma única sensação – a dor lancinante do fêmur quebrado e da perna imobilizada. Jogavam meu corpo da maca para o metal gelado da mesa do raio x e vice-versa sem a menor compaixão. Eu tinha entrado no hospital no começo da manhã, agora já passava das quatro horas. Não sentia fome, não tinha tomado sequer um copo d’água.

Estava no limbo, na ala conhecida como “amarelinha”, ainda na maca, aguardando um leito na enfermaria de ortopedia. Só então consegui que me aplicassem um remédio para aplacar a dor. A injeção subcutânea de Tramal na barriga me daria um enjoo épico: nas 24 horas seguintes vomitei tudo o que ingeria, engolindo às vezes de volta aquilo que acabava de vomitar. Já era noite quando me instalaram no leito 01 da enfermaria 203, que eu ocuparia durante meus vinte dias de hospital. 

"Um detalhe singular: dos vinte pacientes da enfermaria 203, eu era o único que não tinha sido vítima do automóvel"

Naquele cercadinho de 2m x 3m, me flagrei algumas vezes cabeceando, quase pegando no sono, mas logo despertava. Como na maluca descida de serra nos anos 60, no dkw do meu pai, em que me via cabeceando e acordando a cada curva da Estrada de Santos. E lembrei do “pescoção” – como chamávamos o longo mutirão para fechar as edições de fim de semana do jornal. Essas digressões foram varridas pelo vozeirão tonitruante do vizinho de enfermaria recitando a prosopopeia do seu acidente. Foi o único que me deu um cartão de visita, o nome esdrúxulo quase me levou a perguntar: “Oviran, gotas ou comprimidos?” – mas recolhi a piada, parecia um sujeito de maus bofes. Seu relato rolava em loopings: 

O maluco jogou o carro na contramão, não tinha nenhum carro parado na calçada, só uma caçamba de entulho cheia. Não é que ele mandou a caçamba quase um quarteirão adiante? O Miguel Couto é um grande hospital, vem gente do mundo inteiro aprender com seus médicos, mas meu dedão do pé direito gangrenou e tiveram de amputar... 

O maluco jogou o carro na contramão... 

Lamentava seus vícios – o cigarro, a cachaça, as mulheres – e prometia arrependimento eterno: “Agora sou de Deus, só Ele salva!” Foi um dos muitos que conheci no hospital capazes de resolver com extrema simplicidade o problema da religião. Era o caso dos evangélicos, até então eu não conhecera nenhum pessoalmente. “Só Deus salva”, e estamos conversados, era só pagar o dízimo de 30%. Muito diferente da profunda crise mística por que passei na adolescência quando li A Montanha dos Sete Patamares, a autobiografia do monge trapista Thomas Merton. Alguns destes “bíblias” eram casados com minhas cuidadoras – elas também crentes e pagantes fiéis do “pedágio da fé”. Descobri que esses pastores, que usavam terno no culto, adoravam gravatas. Para agradar suas mulheres, presenteei dois ou três com algumas peças do meu acervo. Tendo morado os anos elegantes na Europa, eu possuía uma coleção, das melhores grifes. Um deles, um diácono, profissão porteiro, não sabia dar nó, quem preparava sua gravata era a mulher. 

Um detalhe singular: dos vinte pacientes da enfermaria 203, eu era o único que não tinha sido vítima do automóvel. Três garotos tinham dormido na direção, um deles caiu com o carro no Jardim de Alah, no Leblon, e quase morreu afogado no canal. Outro foi atropelado pelas costas na calçada por uma moto desgovernada, empurrada por um ônibus. Há pouco tempo, num dossiê que postei no blog Panis Cum Ovum (Automorte: A Megapandemia), eu listei as vítimas famosas desde que o automóvel começou a circular em meados do século XIX. Entre elas, as duas princesas do século, Grace de Mônaco e Diana, o ator James Dean, o escritor Albert Camus, o pintor Jackson Pollock, os cantores Francisco Alves, Maysa, Gonzaguinha. A escritora Margaret Mitchell, ainda em meio às vendas colossais de E o Vento Levou, morreu atropelada por um taxista bêbado quando ia ao cinema. Na Califórnia, o cineasta alemão F. W. Murnau morreu aos 42 anos num Rolls-Royce dirigido por um criado filipino de 14 anos. Na Riviera Francesa, a dançarina Isadora Duncan, aos 50 anos, teve o pescoço quebrado quando sua echarpe se enroscou na roda de um carro esporte. As estatísticas são assustadoras: a cada 24 segundos o automóvel mata uma pessoa sobre a face da Terra (a faixa etária mais atingida está entre 5 e 29 anos).

 "Não me surpreenderia se organizassem competições de “comidinha de hospital”, nos moldes do Comida di Buteco". 

A hospitalização revolucionou minha vida social. Conhecido na Manchete como O Eremita, vivi os últimos anos praticamente trancado, fazendo traduções, matérias jornalísticas ou anotando minhas memórias no blog Panis Cum Ovum. No Miguel Couto tive contato compulsório com centenas de pessoas: médicos, enfermeiras, pacientes e o que mais aparecesse. No meio da madrugada acendiam-se todas as luzes e adentravam ruidosamente os garis (e as garis) hospitalares da Comlurb, lépidos e fagueiros: ao abrigo das balas perdidas da rua, ganhavam ainda uma taxa de insalubridade. As baterias de led no teto agrediam meus olhos, mais vulneráveis à luminosidade depois da cirurgia de catarata.

Um exército de enfermeiras trocava nossas fraldas e nos dava banho. A maioria era de bravas mulheres negras que ganhavam uma miséria e moravam na periferia, a horas de viagem do hospital. Com o marido desempregado, encarcerado ou sumido, garantem a sobrevivência dos filhos.

Não posso esquecer o pessoal da alimentação. Nos hospitais cariocas entopem você de comida, nada menos do que seis refeições: café da manhã, colação (palavra do tempo das minhas avós), almoço, merenda, jantar e ceia. A farra começa às sete da manhã e termina às dez da noite. Cada enfermaria e uti tem a sua dietista, que leva em conta as menores idiossincrasias dos pacientes. Zelosas do seu ofício, as dietistas fiscalizam quem não está se alimentando devidamente. Não me surpreenderia se organizassem competições de “comidinha de hospital”, nos moldes do Comida di Buteco.  

Toda aquela fartura começou a me apavorar. Atado ao leito, não tinha como processar o que comia – se comesse tudo o que me serviam. Passei a evitar alimentos sólidos e preferir os suplementos, iogurtes, pudins e sucos. Impossibilitado de ir ao vaso – e sequer de usar uma “comadre” – não conseguia defecar na horizontal. Era algo que contrariava a lei da gravidade. Só ao voltar para casa, valendo-me de um poderoso laxante, depois de uma noite inteira de esforços insanos, consegui normalizar aos poucos as funções intestinais.

"A última noite foi inesquecível: acionei o controle para erguer a cabeceira do leito, ele escapou da minha mão e eu me vi guindado às alturas"

Mais où sont mes madeleines d’antan? [Mas onde estão minhas madeleines de antigamente?] Todo tipo de pragas havia se abatido sobre mim, mas eu não imaginava aquela que se deflagrou justo na minha volta para casa. Ouvira falar da Abolição do Paladar como um dos efeitos colaterais da Covid, mas não sabia que era um flagelo tão terrível, no meu caso, decorrente da anestesia e do excesso de remédios. Já nos últimos dias de hospital eu sentira alguns sinais truncados em meu apetite. No primeiro café da manhã doméstico, pedi que me servissem madeleines. Mordi a primeira e refuguei, o café tinha gosto de água suja. Quando perdi totalmente o sabor, uma batata frita parecia um pedaço de graveto. O suco de um limão-taiti inteiro, sem açúcar, doía de tanta doçura. Aquele inferno gustativo durou quase três semanas e as pessoas achavam que eu estava de frescura.

Minha fratura aconteceu no pior momento possível, na quarta-feira anterior ao Carnaval. Tudo parou. Minha cirurgia só foi marcada para a sexta-feira após as Cinzas, e acabou cancelada porque não havia bolsa disponível com meu sangue – um dos mais banais, o Rh negativo. Só fui operado na terça-feira, o último dia de fevereiro. A cirurgia durou uma hora e, devo reconhecer, foi um sucesso. O Miguel Couto é uma referência e um milagre da eficácia em traumas ortopédicos. Com o humor que ainda me restava o batizei de Couto D’Or. Uma semana depois eu deixava o hospital. A última noite foi inesquecível: acionei o controle para erguer a cabeceira do leito, ele escapou da minha mão e eu me vi guindado às alturas, com a ameaça de ser catapultado para fora da cama. Socorreu-me Sônia, acompanhante de um paciente vizinho. Minha irmã a contratou para ser minha cuidadora na volta à casa. Estou devendo a Sônia um almoço no restaurante Mirante Rocinha, que, garantiu ela, “é show, dá match”.

Minha reação inicial ao acidente foi de revolta. O que fizera eu para merecer aquele castigo? O ano começou com uma crise de depressão braba da Lena. Na segunda-feira chuvosa de 9 de janeiro, eu a internei na UPA de Botafogo, um fiapo de gente com menos de 35 kg. As tevês transmitiam ininterruptamente imagens tétricas da tentativa de golpe no domingo, em Brasília. Na sexta-feira 13 a transferiram para o Rocha Maia, um hospital eficiente e tranquilo, ela saiu de lá com 8 kg a mais. Ia visitá-la quase todo dia, feliz por ver que havia saído do buraco. Sempre tive o hábito de caminhar, pela necessidade física e também filosófica, à maneira de Rousseau. Até 2020, morando havia 37 anos em Botafogo, caminhei pelas planuras da Paróquia de São João Batista da Lagoa. Ao mudar para o Baixo Glicério, tornei-me um flâneur das ladeiras escarpadas e escadarias de Laranjeiras. Vangloriei-me das novas façanhas numa postagem intitulada Tomando caipivodca e lendo P. G. Wodehouse na Montanha Mágica de Laranjeiras num momento de crise aos 85 anos: só eu... Acho que provoquei a sorte e a velha húbris voltou a me assolar – o dicionário define o conceito, da Grécia antiga, como confiança excessiva, orgulho exagerado, presunção, arrogância ou insolência, que acaba com frequência punida pelos deuses.

Só depois que me informei melhor a respeito do fêmur, cheguei à conclusão de que foi ele o vilão de toda aquela história. É o osso maior e mais volumoso do corpo humano, suporta uma pressão de 1 230 kg por cm² e, num homem de 1,80 m (meu caso), chega a medir 50 cm. Nas ocorrências de fratura do fêmur, o laudo apontava como causa “queda da mesma altura”. Eram inumeráveis as fraturas espontâneas do fêmur. 

O fêmur também mata. Enquanto eu escrevia, a tevê noticiava a morte, aos 78 anos, da cantora Cynara, que formava com as irmãs Cyva, Cylene e Cybele o Quarteto em Cy, criado em 1964. Internada para uma cirurgia de fratura do fêmur, morreu de insuficiência respiratória. Com Cybele, Cynara defendeu sob vaias no Maracanãzinho a canção Sabiá, de Tom Jobim e Chico Buarque, no polêmico Festival Internacional da Canção de 1968.

Vi na internet a notícia de um idoso que encontrou fechada uma oficina em Registro, no interior de São Paulo, e foi perguntar para o morador vizinho a que horas o local abriria. Ignorado, o homem, de 82 anos, questionou: “Você está surdo?” Seu interlocutor o agrediu a socos e chutes: “Vou te matar, seu velho nojento!” Jogado sobre um monte de pneus, o idoso quebrou o fêmur e morreu.

Em agosto morreu no Rio de Janeiro Marília Carvalho, de 81 anos, em consequência da fratura do fêmur e da bacia ao ser empurrada no chão, no bairro da Tijuca, por um doente mental.

"Foi por puro instinto de preservação que me agarrei às sessões de fisioterapia, por mais dolorosas que fossem"

Uma das cenas mais impressionantes do cinema é a briga dos macacos em 2001: Uma Odisseia no Espaço, usando como tacapes fêmures achados em ossadas. Kubrick armou a imagem genial – uma elipse de zilhões de anos-luz – em que um fêmur arremessado ao Céu se transforma numa nave espacial deslizando rumo a uma estação lunar, ao som do Danúbio Azul. Cruzado com uma tíbia debaixo da caveira, o fêmur é o emblema da bandeira dos piratas. Os corsários voltaram com força total nos últimos anos graças à série de filmes e parques temáticos da Walt Disney Piratas do Caribe. Nos devaneios desencadeados pelo desconforto da posição rígida na cama e pela impossibilidade de dormir, pensei em minha filha Natasha, que mora na Alemanha há sete anos. Brincando o Carnaval carioca com amigos, ela costumava me telefonar a altas horas: “Pai, cante uma daquelas da antiga!” Eu conhecia muitas – da odalisca, do gago, do bebum, da balzaquiana –, mas geralmente atacava com esta marchinha de 1947:

Eu sou o pirata da perna de pau/Do olho de vidro, da cara de mau/Eu sou o pirata da perna de pau/Do olho de vidro, da cara de mau/Minha galera/Dos verdes mares não teme o tufão/Minha galera/Só tem garotas na guarnição/Por isso se outro pirata/Tenta a abordagem/Eu pego o facão/E grito do alto da popa:/“Opa! Homem não!”

Era um sucesso de Nuno Roland, uma das vozes de ouro da Era do Rádio. Várias vezes fui vê-lo nas matinês de domingo do Cine Avenida, em Curitiba. Anos depois, Nuno Roland, diabético, feriu o pé, que gangrenou, e levou à amputação da perna. Morreu sem tempo sequer de botar a perna de pau...

Para terminar com o fêmur, fiz em sua homenagem um daqueles meus haicais safados, parodiando a exaltação dos ruralistas ao agro: O fêmur é fálico/O fêmur é flibusteiro/O fêmur é pop.

Viver é muito perigoso, já dizia o velho Rosa. Ainda bem que não me aprofundei sobre minha fratura, a do cólon do fêmur. As estatísticas são terríveis. Ao contrário das outras, ela oferece um quadro bem mais grave e complicado. Não basta imobilizar o osso para curá-la. O tratamento é feito através de cirurgia, com a colocação de placas, parafusos ou próteses metálicas, e a recuperação completa é lenta. Muitos pacientes não conseguem voltar a andar e se tornam dependentes de ajuda. Sua imobilização crônica costuma provocar complicações como embolia pulmonar, trombose venosa profunda, úlceras da pele, pneumonia e infecções urinárias. O índice de transtornos graves a curto e médio prazo pode elevar a mortalidade durante o primeiro ano a até 20%. 

Foi por puro instinto de preservação que me agarrei às sessões de fisioterapia, por mais dolorosas que fossem. Tive a sorte de cair nos braços de uma terapeuta excepcional, Danielle Aguiar. Com 23 anos de prática, alia a eficiência profissional a um forte espírito de compaixão. Dani sabe exatamente como tratar cada paciente. No meu caso, trabalhou alternadamente a musculatura, a postura e o equilíbrio. Ao fim de quatro meses sob seus cuidados, voltei a andar como antes. 

No dia 27 de abril, na terceira revisão no Miguel Couto, recebi alta. Era a véspera dos 45 anos de meu casamento com Lena, resolvi fazer algum tipo de comemoração. No playground do condomínio existe uma casinha de madeira que lembra vagamente a casa da famosa tela American Gothic (1930), de Grant Wood. Numa viagem pelo Centro-Oeste americano, ele viu uma casa em estilo gótico rural e resolveu pintar o tipo de pessoa que poderia morar nela. Retratou, com a casa ao fundo, um fazendeiro segurando uma forquilha ao lado da filha, que veste um avental. Resolvi parodiar a tela. Com o entusiasmo dos tempos em que produzia fotos na revista Manchete, juntei as indumentárias mais adequadas que tínhamos em nosso limitado guarda-roupa. Lena e eu posamos na casinha do playground e nossa cuidadora, Cláudia Alves, nos fotografou com seu celular. 

Mandei as fotos para meu filho, que mora em Edimburgo e é chegado às artes gráficas. Ele já conhecia o American Gothic de uma visita ao Art Institute of Chicago. Nasceu assim Brazilian Caipira. Um detalhe: no seu Photoshop, não usou o camafeu da tela original no pescoço da moça, respeitou a improvisação que eu mesmo fiz, com um pedaço de papelão recortado e filigranas desenhadas com liquid paper. Penduramos nosso quadrinho comemorativo das Bodas de Rubi num lugar de honra da sala de estar.

As vinte noites que passei sem dormir no Miguel Couto eu usei para “escrever” na minha cabeça. Logo me dei conta de que estava compondo as palavras no vazio. Como quase todo mundo, eu sempre escrevera usando alguma ferramenta: um lápis ou caneta, nas primeiras redações infantis; aos 12 anos já tinha minha máquina de escrever portátil. Hoje, se pertencesse à tribo dos whatsappers, poderia gravar minhas impressões num celular, mas não era o caso. Em casa, continuei atrelado a uma cama hospitalar. Lembrei da restrição que eu fazia a Kafka em sua frase de abertura de A Metamorfose: “Ao acordar de sonhos inquietos certa manhã, Gregor Samsa se viu transformado na sua cama numa criatura horrenda.”  Eu implicava com “na sua cama”, achava redundante – afinal, onde é que um cidadão acorda toda manhã? Agora eu abarcava aquele in seinem Bett com toda a concretude do mísero retângulo que seria minha prisão por mais de dois meses, até que juntasse forças para escapar à letargia pegajosa do leito, uma atração fatal que eu associava ao Aspiro ao Grande Labirinto, o livro de Hélio Oiticica. Eu me apegara de tal modo à cama que as escaras e feridas do longo contato com o colchão eram as escamas da “criatura horrenda” de Kafka.

Um blues de Duke Ellington ilustrava também admiravelmente minha situação, Rocks in My Bed: My heart is heavy as lead/because the blues has done spread/rocks in my bed./Of all the people I see/why do they pick on poor me/and put rocks in my bed?/All night long I weep/so how can I sleep/with rocks in my bed [Meu coração está pesado como chumbo/porque a deprê espalhou/pedras na minha cama./De toda essa gente que vejo por aí/e foram escolher logo a mim, esse pobre coitado/para despejar pedras na minha cama?/A noite toda eu choro/então como posso dormir/sobre as pedras espalhadas na minha cama]. Passei ao todo 68 noites e dias carregando aquela cama como um caracol carrega sua concha. Sem alternativa, concentrei-me em escrever “além das nuvens”, evocando um dos últimos filmes de Antonioni. Voltei ao teclado ainda com desconforto e dores na perna. Para combater minha resistência à página em branco, imprimi numa folha a4, repetida em quinze linhas, a frase “O escritor escreve”. Percebi então que tinha muita coisa na cabeça e uma voracidade desmesurada para colocar tudo no papel, sem esquecer a minha mania de abrir parênteses e me entregar a divagações (Lena me apelidou de Doutor Divago...).

As muitas frases que compusera na minha cabeça equivaliam às alternate takes dos primeiros lps de jazz. Eram as tentativas dentre as quais apenas uma, a master take, seria lançada no disco original. De certo modo, derrubavam o mito da livre improvisação e mostravam que existia na cabeça do jazzista um desígnio formal prévio que fazia dele uma espécie de “compositor instantâneo”. Nas nove takes que o pianista Bill Evans gravou do tema de Luiz Eça The Dolphin, as diferenças entre os improvisos são praticamente imperceptíveis.

"Recuperei também o prazer da escrita e retomei projetos que havia deixado de lado: minha autobiografia A Vida É uma Reportagem"

Esse mecanismo se repetia em mim: havia na minha cabeça uma “matriz” programada para descrever este ou aquele sentimento ou situação. Lembro como o mestre do Nouveau Roman, Alain Robbe-Grillet, escritor frio e cerebral, abriu as comportas da emoção ao narrar um acidente aéreo do qual escapara com a mulher em 1961. Derramou lágrimas de crocodilo ao lembrar a queima, na bagagem, de um bracelete que dera à mulher para comemorar os dez anos do seu encontro casual num trem do Expresso do Oriente, em Istambul. 

Depois de alguns dias de trabalho, cheguei a um copião que era uma verdadeira colcha de retalhos. Comecei então a eliminar impiedosamente trechos inteiros que considerava inúteis. Depois, operei cortes meticulosos e cirúrgicos na escrita. Apelei para a Teoria do Iceberg do velho Hemingway: “Se escrever apenas a verdade, um escritor pode omitir muitas coisas. O leitor sentirá essas coisas que foram ocultadas com tanta força como se o escritor as houvesse explicitado. A dignidade de um iceberg existe porque apenas um oitavo dele está acima da água.” 

A fratura do fêmur foi um abalo sísmico, um divisor de águas, uma cesura epistemológica na minha vida. Acredito que consegui reconstituí-la com objetividade nesta narrativa, sem abrir mão do emocional. Recuperei também o prazer da escrita e retomei projetos que havia deixado de lado: minha autobiografia A Vida É uma Reportagem, o romance noir Mistério na Glicério, o romance-da-praia Zen & Corn Flakes e o romance-da-Serra Jardins de Pedra.

A autobiografia, além da trajetória pessoal, detalha a profissional: setenta anos de carreira, do começo na Gazeta do Povo de Curitiba, passando pelo Centro de Formação de Jornalistas de Paris (1960-62), pelo Serviço Brasileiro da bbc de Londres (1962-65), de volta ao Brasil para 35 anos de Editora Bloch no Rio de Janeiro – fui o editor da revista Manchete que mais tempo ficou no cargo –, além de uma temporada na equipe inicial de Veja, nos anos cruciais de 1968-69. E, ainda, os profícuos anos de free lancer no pós-falência da Manchete, a partir de 2000. Com direito a revelações exclusivas sobre os bastidores do jornalismo brasileiro na segunda metade do século xx. 

Tudo isso sem horários, prazos ou qualquer angústia de obrigatoriedade. Misturado ao lazer: cinema, particularmente o filme noir; jazz, em especial o bebop; e os escritores que sempre me acompanharam – o Bardo e a Bíblia, o Trio do Século (Kafka, Joyce, Proust), o Bruxo (do Cosme Velho) e o Vampiro (de Curitiba), Rosa, Drummond, Bandeira, Clarice; Fitzgerald, Hemingway, John Fante, Cheever & Carver, Conrad, Simenon, Patricia Highsmith, Dylan Thomas, o Svevo de Zeno. E Salinger, o único – além de Albertine Sarrazin (O Astrágalo) – que faz uma referência ortopédica específica num título, no conto Uncle Wiggily in Connecticut – uncle, tio, soa como ankle, tornozelo, que a heroína torce ao correr atrás de um ônibus com o namorado. Todas essas predileções atuam, ainda que inconscientemente, como influências no meu processo de escrita. 

Sinto hoje como se estivesse descobrindo pela primeira vez o ato de escrever. Não como um ofício, um apostolado, ou uma missão, mas como uma atividade lúdica.

Agrada-me muito a expressão de Boris Vian para a passagem do tempo, o lento e silencioso rolar da “espuma dos dias”. E escolho como fecho uma frase da Baronesa, Isak Dinesen (cujo sobrenome batizou o asteroide 3318 Blixen): 

“A Vida e a Morte são duas urnas fechadas, cada uma delas contendo a chave que abre a outra”.


quinta-feira, 12 de outubro de 2023

Roberto Muggiati revela o traço irônico e bem-humorado de J.A.Barros (1931- 2023) nos bastidores da redação da Manchete e recorda o dia em que ele preparou uma "armadilha" para um crítico de cinema presunçoso


J.A.Barros transformou em figuras muita gente da velha Bloch. Mas, infelizmente, suas frágeis  esculturas eram arte efêmera. Nem o próprio artista guardou suas caricaturas em 3D. A técnica era simples. 
Ele fazia o desenho colorido sobre papel branco que, em seguida, recortava e colava sobre uma pequena placa de isopor. 

Aí aparava cuidadosamente o conjunto, obedecendo ao contorno marcado pelo desenho e adicionava uma espécie de minipedestal. 

Bela figura que se vai. O amigo Barros faleceu hoje, aos 92 anos.





Os exemplares reproduzidos acima são raríssimos e pertencem aos meus arquivos. Barros presenteava aos seus caricaturados e fui um deles. Os desenhos eram feitos nas horas que afinal importam: as vagas.   

Leia também "O teste Guilaroff de Cinefilia" sobre o dia em que o Barros surpreendeu um famoso crítico de cinema. 

Amantes do cinema se reconhecem pelo apego ao detalhe. No caso, aqueles créditos de produção que, nos anos 40 e 50 rolavam sempre no começo da “fita”. Dos atores principais ao diretor, passando por cenário, fotografia, música, orquestrações, figurinos e ... cabelos. De tanto ir ao cinema, ficávamos – os mais curiosos – com aqueles nomes gravados na memória. Foi assim que nosso diagramador João Américo Barros me surpreendeu uma tarde na redação ao perguntar a um crítico da Manchete, à queima roupa, se ele conhecia Sydney Guilaroff. O crítico não era um crítico qualquer, mas um daqueles Moniz Vianna’s boys que galopavam com os cavalarianos de John Wayne no Monument Valley e davam relutantes duas ou três estrelas aos filmes em cartaz no famoso quadro de cotações do Correio da Manhã. Sem nenhum pudor ou culpa o crítico respondeu: “Sidinêi quem?” Vibrei com o Barros, Sydney Guilaroff foi um nome que, desde que o vi na tela pela primeira vez, eu carregaria na cabeça para o resto da vida, mesmo sem conhecer ainda sua incrível história. E saquei na hora também que o Barros tinha criado o teste definitivo de cinefilia. Se o cara ignorava Sydney Guilaroff, não merecia ser considerado cinéfilo, mesmo assinando todas as críticas do mundo. 

CLIQUE AQUI

 


segunda-feira, 18 de setembro de 2023

Mídia: reflexões sobre uma foto

  

Em 1963, Jango, em viagem presidencial ao Chile
e ainda em Santiago, recebe a edição da Manchete com parte da cobertura da visita.
Foto de Nicolau Drei  

por José Esmeraldo Gonçalves 

Há alguns dias, Roberto Muggiati, ex-diretor da Manchete, escreveu aqui sobre a tradicional agilidade da revista ao reabrir edições para acrescentar acontecimentos importantes, de última hora. As coleções mostram outro exemplo desse compromisso extremo com a notícia. Em 1963, Jango visitou o Chile. Foi uma das inúmeras viagens do então presidente em seu curto mandato. Foi a países da Europa, aos Estados Unidos, onde foi recebido por John Kennedy e desfilou em carro aberto na Quinta Avenida e, ainda como vice-presidente, foi à China, então país fechado e muito raramente visitado por nações ocidentais ou da América do Sul, como nós do Sul Global, como se corrige agora. 

Já engajado na campanha golpista que resultou na ditadura a partir de 1964, O Globo mantinha fogo cerrado contra Jango. Manchete cobria bem as viagens do presidente brasileiro, com farta ilustraçãpo, embora a revista também abrigasse conspiradores na sua diretoria, como foi revelado em 1981 no livro "1964, a conquisa do Estado", de René Dreyfuss, com nomes e funções dos envolvidos no organograma da preparação do ataque fatal à democracia. 

Na foto, Jango, ainda em Santiago, entrega um exemplar da Manchete ao presidente Jorge Alessandri, que ficou surpreso ao receber impressa em prazo recorde a cobertura de parte da visita presidencial. "No es posible, no es posible", disse o anfitrião, enquanto Jango brincava: "Eles querem concorrer com a televisão"

Em uma das páginas da edição aparece a primeira-dama  Maria Teresa Goulart, que também era frequentemente atacada pelo Globo. Alessandri, aliás, disputaria nova eleição em 1970, quando perderia para Salvador Allende que, há 50 anos, foi assassinado por militares chilenos comandados por Pinochet e com apoio da ditadura brasileira e dos Estados Unidos. 

O encontro do sorridente Jango com o chileno aconteceu há 60 anos. Manchete não mais existe, mas há coincidências históricas aí. O Grupo Globo em todas as suas plataformas está agora em forte e previsível campanha contra Lula. Editorialistas, comentaristas, colunistas parecem seguir ordens da cúpula e ampliam um jogral deturpado de "interpretações" sobre cada passo do governo. Tal qual os idos de 1963. Maria Teresa era alvo, assim como Janja é vítima, hoje. O que ela fala, veste, o que compra, tudo é ironizado pelo Globo. 

O mais espantoso: o jornalão dos Marinho publicou recentemente um editorial pedindo "paz". Paz para os golpistas, bem-entendido. O Globo diz que o país tem que se reconciliar com a turba que depredou o Congresso, o STF e o Planalto. O elemento terrorista que tentou explodir uma bomba em um caminhão de combustível perto do aerooprto? Relevemos, sugere o editoriatista. O grupo que tentou e felizmente não consegui lançar um ônibus em cima de carros que conduziam pessoas que voltavam do trabalho? Esquece. Foi o calor do momento. Não sabemos  ou sabemos das intenções do Globo. De golpe o jornal sabe tudo. A julgar pelo que escreve e fala, o Grupo não pretende se conciliar ou pelo menos ser jornalisticamente honesto com um governo que apenas uma semana depois de tomar posse foi vítima de uma tentativa de golpe. Vê-se em alguns bolsões que a tentativa foi apenas pausada. O Globo, assim como Estadão, Folha, Farialimer, neopentecostalismo, cacs, viúvas da Lava Jato, narcogarimpo, o agro pop e Roberto Jefferson etc procuram um candidato do "centro" para 2026. Ainda não encontraram e essa pretensão tem uma condicionante histórica: se não tem tu vai tu mesmo. "Tu mesmo" sendo o replay de 2018 com um "Paulo Guedes" garantidor, como os colunistas do Globo afirmaram na época, que vai preservar os privilégios econômicos seja quem for o tal meliante escolhido para representar o "centro" Quer apostar?            

segunda-feira, 11 de setembro de 2023

Memórias da redação: Há 50 anos, “Salvador Allende, presente!” • Por Roberto Muggiati

 



Era terça-feira, 11 de setembro de 1973, e a Manchete estava fechada quando soubemos do golpe no Chile. A magnitude do fato exigia um registro imediato. Com grande parte da revista já impressa, optamos por um encarte de oito páginas. A relativa proximidade geográfica permitiu-nos obter material fotográfico dos trágicos acontecimentos que culminaram com o suicídio de Salvador Allende e o massacre de seus apoiadores, acuados no Palácio de la Moneda e bombardeados pela artilharia, tanques do exército e aviação, comandados pelo general Augusto Pinochet. Massacradas também foram as forças da resistência civil, formadas por bravos, mas mal equipados grupos estudantis e operários. Revivi agora aquele momento histórico vendo pela primeira vez o filme de Helvio Soto Chove em Santiago (1975), que descreve as últimas horas do governo Allende.

Mesmo sendo uma semanal ilustrada de assuntos gerais, com forte ênfase no mundo do entretenimento, a Manchete sempre manteve um compromisso com a cobertura da atualidade. Não foram poucos, nas décadas seguintes, os acontecimentos que exigiram a reabertura da revista às terças-feiras. Lembro o assassinato do Rei Faisal da Arábia Saudita por seu sobrinho em 25 de março de 1975. 


Em 1974, quando o presidente norte-americano Richard Nixon renunciou na onda do Escândalo de Watergate, na sexta-feira, 9 de agosto de 1974, fizemos uma edição extra em preto-e-branco que chegou às bancas em menos de 24 horas.


O assassinato de John Lennon em 8 de dezembro de 1980 – nas primeiras horas da terça-feira 9 de dezembro, horário de Brasília – nos levou à produção de um encarte na edição de quarta-feira e a atualização com uma chamada enorme ocupando quase metade da capa de gala de Pelé, já praticamente impressa.


Na segunda-feira, 30 de março de 1981, o presidente Ronald Reagan sofreu um atentado a bala em Washington. Tivemos de esperar a chegada das fotos pelo malote de Nova York para paginar a matéria de abertura e a capa na manhã de terça-feira. Três coisas a destacar:

• Semanas depois, em 13 de maio, na Praça de São Pedro, no dia de Nossa Senhora de Fátima, o Papa João Paulo II sofria um atentado.

• O atentado contra Reagan foi cercado de conotações cinéfilas, ele próprio tendo sido um galã de Hollywood. A cerimônia de premiação do Oscar, marcada para aquela noite, foi cancelada. O agressor, um adolescente perturbado, atirou contra o Presidente para chamar a atenção da atriz Jodie Foster, que despertou nele uma paixão obsessiva ao vê-la no filme Taxi Driver, cujo tema era justamente um atentado político.

•  O autor das melhores fotos do atentado contra Reagan foi o brasileiro Sebastião Salgado, da agência Magnum, que vinha na cola do presidente para registrar seus primeiros 100 dias de governo. Salgado, com o dinheiro da venda das fotos, conseguiu se dedicar ao seu projeto de documentação da natureza e da ocupação humana voltado para a preservação do planeta.


Numa terça-feira especial de março de 1985, Carlos Heitor Cony, com sua vocação de portador de más notícias, me ligou de Brasília no meio da noite: “Muggiati, como editor da Manchete você precisa saber: o Tancredo não toma posse amanhã. ” Dito e feito. A cobertura da doença do primeiro presidente civil pós-ditadura se estenderia por mais de cinco semanas de trabalho desgastante para os jornalistas, principalmente os da imprensa diária. Com Gervásio Baptista como fotógrafo oficial da presidência – escolha de Tancredo confirmada por Sarney – tivemos a primeira foto exclusiva do presidente após sua hospitalização: com dona Risoleta e o corpo médico em Brasília. Foi capa, com a chamada triunfalista TANCREDO: A VOLTA POR CIMA. Às seis da manhã da terça-feira toca meu telefone de cabeceira. O chefe de reportagem, Cesarion Praxedes, esbaforido, me avisava que Tancredo acabara de ser transferido para o InCor, em São Paulo. Com as fotos da remoção do Presidente atualizamos a matéria de abertura. A foto da capa ficou ainda mais atual, com uma nova chamada: TANCREDO: O DRAMA DO PRESIDENTE. Seria a última foto de Tancredo Neves vivo.

Outra terça-feira 11 de setembro ocuparia os noticiários, a de 2001, com a explosão das Torres Gêmeas em Nova York. Ficamos fora dessa, os jornalistas da Manchete. As Torres Gêmeas do Russell já haviam caído, em 1º de agosto de 2000. Significativamente, uma terça-feira...

PS • O 11 de Setembro do Bem 

Foto da sessão de gravaçã de Love me do, em 11 de setembro de 1962 na capa da partitura.

Aconteceu no ano de 1962 em Londres, nos estúdios de Abbey Road, quando os Beatles gravaram o seu primeiro single: Love Me Do/P.S. I Love You. Foi uma tarde tumultuada. 

O produtor da EMI, George Martin, considerava Ringo Starr um baterista de bailes e preferiu se garantir com um escolado baterista de estúdio, Andy White. Mas, pressionado por John, Paul e George, Martin resolveu dar uma chance a Ringo. Usou alternadamente os dois bateristas para escolher a melhor take. Só a 17ª tentativa, com Ringo à bateria, agradou seus exigentes padrões. Àquela altura John já estava com os lábios anestesiados de tanto soprar o riff na gaita-de-boca. Finalmente, depois de tanta luta, os rapazes de Liverpool conseguiam gravar seu primeiro disco. Coincidência histórica: 11 de setembro de 1962 também caiu numa terça-feira.



sexta-feira, 1 de setembro de 2023

Em 1955, um Picnic subversivo em Hollywood • Por Roberto Muggiati


Zapeando pelo YouTube, fui brindado com um favorito que não revia desde o século passado: Picnic/Férias de amor (1955), o filme que Joshua Logan fez baseado na sua montagem da peça de William Inge ganhadora do Pulitzer, estreada há 70 anos na Broadway. Esse drama romântico usa todos os ingredientes da receita clássica de Hollywood, mas o resultado é um prato picante, duro de engolir para o Establishment. Uma arte subjetiva como o cinema enseja que Fred Astaire dance abraçado amorosamente a um cabideiro ou, em desafio à Lei da Gravidade, sapateando sobre o teto. Em Cantando na chuva, Gene Kelly se esbalda chutando poças d’água até que surge um policial de ronda com seu cassetete e Gene se refreia com um irônico/icônico piscar de olhos para a plateia.

Picnic transcorre no que tinha tudo para ser um pacato fim de semana do Labor Day (a primeira segunda-feira de setembro) numa cidadezinha do Kansas. Mas a chegada de um clandestino num trem de carga vai estragar a festa de todo mundo. Hal Carter, de origem humilde, garoto de reformatório por roubar uma moto, entra na universidade graças a seus dotes atléticos, jogando futebol americano.  Terminada a bolsa, tenta sem sucesso uma carreira de ator em Hollywood. Na caça a um emprego, procura o ex-colega de universidade Alan Benson (Cliff Robertson), cujo pai é dono da imensidão de silos de grãos que se elevam na planície do Kansas. Kim Novak, no papel de Madge, a beldade local, eleita Miss neste verão, é praticamente noiva de Alan Benson. Sua mãe, abandonada pelo marido, antevê já seu casamento com o filho do dono da cidade. Mas bastam duas ou três trocas de olhares entre Hal e Madge para eclodir uma paixão avassaladora. Na metade exata do filme, a dança de acasalamento dos dois é uma das maiores cenas romântico-eróticas do cinema.

Veja William Holden & Kim Novak Dancing in the Movie Picnic - YouTube

https://youtu.be/_DBoMIi8bYc?si=O2JxP1M7oCmP93SV

Essa manifestação de amor explícita provoca uma crise de carência na irmã adolescente de Madge (interpretada por Susan Strasberg), uma explosão de ciúme na professora solteirona (Rosalind Russell), que rasga a camisa de Hal, e o despeito de Alan que, tendo emprestado seu carro a Hal, o denuncia à polícia por furto. Humilhado, Hal vai embora num trem de carga para Tulsa, onde o aguarda um emprego como mensageiro ou ascensorista de um hotel.  Ao se despedir de Madge, ela diz que o ama e o seguirá até o fim do mundo. O desfecho, filmado de helicóptero, mostra os caminhos do trem de Hal e do ônibus de Madge convergindo para o final feliz desta história subversiva em que a mocinha, que podia casar com o dono da cidade, escolhe o amor, a qualquer preço.

PS1 • Um dos grandes galãs dos anos 50, William Holden brilhou ao lado de Gloria Swanson (Crespúsculo dos Deuses), Audrey Hepburn (Sabrina),  Grace Kelly, com quem teve um caso,  (As pontes de Toko-ri), e Jeniffer Jones no lacrimoso Suplício de uma saudade.


PS2
• Por acaso, também revi no YouTube outro favorito, Um lugar ao sol (1951), cuja ação também culmina num Labor Day. Dirigido por George Stevens, e manual de redação de noveleiros globais como Manuel Carlos e outros de sua geração, foi baseado no romance de Theodore Dreiser Uma tragédia americana. Conta a história de George Eastman (Montgomery Clift), sobrinho pobre de um magnata industrial que, contrariando as regras da empresa, tem um caso com uma funcionária da fábrica, Alice Tripp (Shelley Winters). Promovido rapidamente, George começa a frequentar a casa do tio, onde se apaixona por Angela Vickers (Elizabeth Taylor), filha de outro industrial milionário. É hora de se descartar da pobretona Alice, mas a coisa fica mais difícil depois que, grávida, Alice começa a pressionar George para que se case com ela. Um escândalo o fará perder o emprego e a namorada rica – Liz Taylor, na flor dos 19 anos – está apaixonadíssima e quer casar com ele. Ciente de que Alice não sabe nadar, George a convida para um passeio no fim de semana do Labor Day. Passeando num lago, a canoa emborca, os dois caem n’água e George se salva deixando Alice se afogar. A justiça não tarda e um júri popular o condena à cadeira elétrica. Na cena final, a garota dos olhos violeta visita George, jurando seu amor eterno, enquanto ele caminha lentamente para THE END.


sexta-feira, 25 de agosto de 2023

Trump: o primeiro presidente na Galeria da Lama • Por Roberto Muggiati

 







Mug shots célebres: Sinatra, Elvis, Johnny Cash, Jimi Hendrix, Jim Morrison, David Bowie, Mick Jagger, Janis Joplin, Prince, Justin Bieber, Lindasay Lohan, Paris Hilton, Charlies Sheen, Mel Gibson, Robert Downey Jr, Matthew Broderick, James Brown, entre outros. Fotos: Reproduções de arquivos policiais norte-americanos.

Na democracia norte-americana acontece nas melhores famílias e todo mundo tem direito à sua foto oficial feita pelas implacáveis câmeras da lei: o “boneco” fichado pela polícia. Nem um santo como o pastor Martin Luther King, Jr. escapou do “mug shot” oficial. Agora, Donald Trump faz história, ao se tornar o Primeiro Presidente da República a ingressar no chamado “Hall of Shame”. Aqui algumas celebridades – incluindo até estrangeiras – eternizadas pelas lentes da Lei.

sábado, 12 de agosto de 2023

Por uma cabeça • Por Roberto Muggiati

 

Com a enfermeira Andressa, na UPA- Botafogo. Foto de Cláudia Alves 

Com a bandagem que lembrou Apollinaire quando ferido na Primey Guerra Mundial. Foto Lena Muggiati 


Como a morte não vem me buscar – esse joguinho já está até ficando chato – eu resolvi cair e me quebrar de novo no meio da noite. Desta vez cortei a cabeça no ventilador de ferro, na parte alta e traseira (da cabeça, é claro). Contive o sangue com papel toalha e voltei a pegar no sono. O chão de tacos ficou todo respingado de vermelho. Não quis incomodar a Lena que dormia o sono dos inocentes. Quando chegou nossa cuidadora, a Cláudia, deliberamos que o grau de gravidade do caso merecia uma ida a um hospital. No quesito saúde, recebo tratamento exclusivo da rede UPA d’Or, a minha unidade favorita é a de Botafogo. Minha idade provecta, 80+, foi logo abrindo todas as portas, me atenderam num tempo recorde, a enfermeira limpou o local do ferimento, a médica deu uma picada de anestesia no cocuruto e costurou-me três pontos com aquela agulha curva que parece um anzol. Para fixar o curativo, a enfermeira Andressa enlaçou minha testa com uma bandagem que me lembrou aquela foto famosa do poeta Guillaume Apollinaire. (Fiz depois uma foto-homenagem ao inventor da palavra “surrealismo”, que combateu pela França na Primeira Guerra, recebeu um estilhaço na fronte em 1916, mas só foi morrer em 9 de novembro de 1918, dez dias antes do armistício, aos 38 anos, da pandemia de antanho, a gripe espanhola.)

Pensei na data, 9 de agosto, algo especial? Sim, 78 anos da segunda bomba atômica, a de Nagasaki, só lembrei da data porque os japoneses ficaram injuriados com a dobradinha “Barbie/Oppenheimer” que, em nome das sacrossantas bilheterias, veio tingir com tons róseos de leviandade um dos episódios mais trágicos de nossa história recente, a Bomba de Hiroxima.

Com bandagem na testa e bengala de quatro pontas, resquício da fratura do fêmur, resolvi, já que estava no Baixo Botafogo, ir tomar um café no Depanneur e procurar um filme na Livraria da Travessa. (Hoje vivo isolado em Laranjeiras, do outro lado do implacável paredão do Corcovado e do Dona Marta.) Achei o que queria, A Via Láctea, do mestre Buñuel. Estou revendo os principais filmes estrelados por Delphine Seyrig – e não são poucos, ela brilha ainda mais em O charme discreto da burguesia – para escrever um perfil da atriz do recém-eleito “melhor filme de todos os tempos”, Jeanne Dielman, 23 quai du Commerce, 1080 Bruxelles. Atriz de Resnais, Truffaut, Joseph Losey, Fred Zinnemann, Jacques Demy, William Klein, Don Siegel, Marguerite Duras, entre outros, Delphine, morta em 1990, reinará suprema até 2032, dona absoluta das três horas e meia do filme de Chantal Akerman, aclamado agora pelo colegiado da Sight&Sound, quase 50 anos depois do seu lançamento, em 1975.


segunda-feira, 7 de agosto de 2023

Arqueologia em centro de tortura: não vão encontrar o meu esqueleto nos porões do DOI-Codi, mas faltou pouco... • Por Roberto Muggiati


Vladimir Herzog em foto na redação na TV Cultura. O jornalista cfoi assassinado por torturadores da ditadura militar no DOI-Codi, em São Paulo, no dia 25 de outubro de 1975.
Foto Reprodução TV Cultura

A coordenadora do projeto, Déborah Neves (à esquerda): pesquisas tentam identificar
indícios de vítimas ditadura militar torturadaas e assassinadas no DOI-Codi paulista.
Foto de Felipe Bezerra/Jornal das Unicamp 

Durante quinze anos – de 1969 a 1983, funcionou nos fundos da 36ª Delegacia
Policial de São Paulo, na Rua Tutoia, o DOI-Codi (Destacamento de Operações de
Informação – Centro de Operações de Defesa Interna) – um complexo criado pela
ditadura militar para torturar e exterminar opositores do regime. De 1969 a 1983,
mais de sete mil pessoas passaram por lá e algumas não saíram, como Vladimir
Herzog, que não resistiu aos castigos corporais e teve sua morte dissimulada por um
grotesco “suicídio” nas grades da cela. Os prisioneiros chegavam encapuzados e
ficavam presos em celas diminutas, incomunicáveis e sem direito a defesa, à espera
das torturas.

Cinco universidades públicas, entre elas a USP e a Unicamp, iniciaram um
projeto de escavação no local onde ficava o DOI-Codi para fazer um levantamento
completo da extensão dos atos de violência ali praticados. Diz Andres Zarankin
professor de antropologia e arqueologia da UFMG, que também participa da
empreitada: “Dente, brinco, cabelo. Anel? Exato. Elementos pequenos que caíram e
vão nos permitir reconstruir essa história, a partir desses fragmentos. Existe toda uma
narrativa por trás desses pequenos objetos e a mesma coisa dentro do prédio”.

Segundo o Jornal da Unicampo, os arqueólogos vão examinar as paredes das celas, para verificar se encontram mensagens escritas nas camadas mais antigas de pintura. E uma investigação inédita
no país vai tentar encontrar vestígios de sangue invisíveis a olho nu, usando luzes
especiais.

O DOI-Codi paulista foi chefiado pelo major Carlos Alberto Brilhante Ustra e
atuou inicialmente de forma clandestina como sede da Operação Bandeirante (Oban),
a partir de 2 de julho de 1969. Cerca de 70 pessoas teriam morrido sob tortura no
local.

Adriano Diogo, militante do movimento estudantil, foi daqueles que chegaram
embuçados ao DOI-Codi. O major que lhe retirou o capuz perguntou:
– Você sabe onde está?
– Não faço a mínima ideia...
– Você está na antessala do Inferno.

Ironicamente, a Rua Tutoia fica no bairro do Paraíso.

Até o final de setembro de 1969 eu morava em São Paulo e fazia parte da
equipe de jornalistas pioneira da revista Veja. Em 9 de dezembro de 1968, numa
badalada noite de autógrafos, lancei o livro Mao e a China; na sexta-feira 13 foi
decretado o AI-5. Verdadeira declaração de amor ao comunismo chinês, último livro
lido por Carlos Lamarca antes de morrer metralhado no sertão baiano, Mao e a China
saiu das estantes das livrarias para exibição em mostras de “material subversivo”
apreendido pelo exército. Eu tinha tudo a ver com Vladimir Herzog: éramos da mesma
idade e ele ocupou minha vaga quando deixei o Serviço Brasileiro da BBC em Londres.
Vários colegas meus da Veja e da Realidade – para a qual eu também colaborava –
foram levados encapuzados para o DOI-Codi.

Minha sorte foi ter trocado a Veja em São Paulo pela chefia de redação da
Fatos&Fotos, no Rio de Janeiro. A volta ao “balneário da República”

Para mais informações sobre as escavações arqueológicas no Doi-Codi de São Paulo, visite o Jornal da Unicamp AQUI

domingo, 6 de agosto de 2023

Ah, as suecas... • Por Roberto Muggiati



O cinema reforça o mito da liberalidade sexual das suecas:
Bibi Andersson e Liv Ullmann em Persona.


Vendo as meninas louras eliminarem as americanas na Copa do Mundo Feminina e revendo Acossado, um soi-disant filme de ação que passa um terço do tempo trancado num quartinho de hotel, com Belmondo de cueca samba-canção desfilando sua Weltanschauung para impressionar Jean Seberg, lembrei da minha experiência com as suecas. Belmondo deambula: “A rapaziada é mentirosa, Estocolmo, por exemplo: ‘As suecas são formidáveis, eu traçava três por dia.’ Estive lá. É uma mentira.” 

A caminho de minha bolsa de estudos em Paris em 1960, parei em Lisboa. Um casal recomendado por amigos me levou a uma casa de fados. Agregado ao casal, havia um capitão do exército, Carlos Lacerda. O nome já não inspirava muita confiança, devia ter muito QI para estar no bem bom, longe da sangrenta guerra colonial. O afável capitão, sabendo que eu viajaria pela Escandinávia, sacou um caderninho preto e copiou para mim numa folhinha de papel os telefones de dezenas de garotas suecas que conhecia e que, em linguagem bélica, eram “tiro e queda.” Quando visitei a Estocolmo no verão de 1961, telefonei, telefonei e telefonei, dias seguidos, para as Ingrids, Margids e Gretas – e não deu em nada. Fiquei literalmente na mão... 


50 anos de Fantástico: revista Manchete foi a inspiração do “Show da Vida” • Por Roberto Muggiati

José-Itamar de Freitas e Nélio Horta na redação da Enciclopédia Bloch
em Frei Caneca. Foto:Acervo Nélio Horta

Conheci José-Itamar de Freitas em Frei Caneca quando comecei a trabalhar como repórter especial da Manchete em 1965. Para complementar o magro salário, escrevia nos Cadernos de Jornalismo da Bloch – que ajudei a lançar –  e passei a colaborar na Enciclopédia Bloch, uma mensal de conhecimentos gerais que Itamar dirigia. Filho de Miracema, no noroeste fluminense, trinta anos (dois mais velho que eu), Zé-Itamar tinha a alma de editor. Infelizmente, os Bloch nunca valorizaram devidamente seu talento. Quando o intimaram a dirigir a mensal Pais e Filhos, Itamar pediu as contas e se mandou: não tinha physique du rôle nem esprit de corps para editar uma revista voltada para fraldas, soluços, papinhas, nana-nenéns e assuntos afins. 

O Fantástico fez uma homenagem especial a
Jose-Itamar de Freitas, em 2020

Foi imediatamente acolhido pela TV Globo, onde, criativo como poucos, aplicou a fórmula da revista Manchete a um programa das noites de domingo com o sugestivo título de Fantástico e subtítulo “O Show da Vida.” Sucesso instantâneo. Nos 30 anos da atração, ele disse à apresentadora Glória Maria: “Quando você passa dezesseis anos num programa, tudo te marca. Acabou sendo a minha vida. Um amor enorme, convivência, amizade, tudo. Eu olho o Fantástico como sendo da família. ”  

José-Itamar de Freitas morreu em 2020, aos 85 anos, de complicações da Covid. 

Foi-se o Criador, a Criatura segue em frente. 


sexta-feira, 4 de agosto de 2023

Curitibana superfogosa bomba na Ucrânia • Por Roberto Muggiati

 Ela conseguiu se fazer ouvir em meio à guerra e acima das explosões e lidera as músicas mais ouvidas na Ucrânia (e em Belarus e no Cazaquistão). A funkeira eletrônica Bibi Babydoll arrebata plateias do mundo inteiro com seu provocante Automotivo Bibi Fogosa, que está no topo da playlist global da plataforma de faixas virais (cuja audição sobe mais rapidamente).

Beatriz Alcade Santos, curitibana de 24 anos, pontificou em 2021 ao emplacar Pirigótika, que chegou a 100 mil views em menos de uma semana. Em seu site, Bibi Babydoll se define como “performer, influencer, publicitária e corporate punk rock whore” – ufa! Com todo esse gás a menina vai longe... 

Curitiba – que conta hoje 70 mil descendentes de ucranianos – retribui assim ao país que resiste bravamente à bárbara invasão russa.

Confira AQUI Bibi Babydoll e DJ Brunin XM - Automotivo Bibi Fogosa (Clipe Oficial)

quarta-feira, 19 de julho de 2023

Flanando na chuva • Por Roberto Muggiati

London Albert Bridge depois da chuva. Foto Roberto Muggiati

Ponte Vecchio, Florença/Reprodução Instagram

Não sei se é coincidência ou tendência, mas tenho visto muita coisa sobre a arte de flanar nas folhas (sim, ainda sou daqueles que lê as folhas, ou meramente as folheia...). O Estadão desta terça dedicou duas páginas ao assunto (Como vagar por cidades ao lado de escritores) e aguardo ansioso o livro que encomendei à Estante Virtual Flâneuse: mulheres que caminham pela cidade em Paris, Nova York, Tóquio, Veneza e Londres (quem sabe já estaria a caminho uma versão “transflâneuxx”?)

Gostaria de contribuir aqui com uma variante sobre o tema que pratiquei em meus dias de Paris, Londres e adjacências: o contrassenso de flanar na chuva. E não o fazia por excentricidade, mas por mera necessidade. Nos três anos que morei em Londres, conheci muito pouco do Reino Unido, apenas um Natal em Bath, uma ida a Stratford para uma nova encenação de uma peça de Shakespeare e uma escapada dominical ao País de Gales. Britânico de raiz, eu passava as férias no “Continente”. E como tinha férias! Solteiro descompromissado, muitas vezes emendava um dia normal de trabalho no Serviço Brasileiro da BBC com a transmissão noturna ao vivo. Isso me rendia “comps”, compensações que eu ia somando para gozar duas ou até três férias por ano. A Itália era um dos destinos favoritos e foi assim que me encontrei no verão de 1963 em Florença, no momento em que jornais do mundo inteiro noticiavam a devastação do meu estado natal, o Paraná, por um dos maiores incêndios florestais da história. Hospedado no centro monumental de Firenze, eu já estava no meu terceiro dia sem poder sair por causa de um a chuva persistente. Alguém me avisara “Florença é o penico do mundo”  – mas não dei ouvidos. Só faltava pedir à dona da pensione que me ensinasse a fazer crochê, mas meu lado rebelde se insurgiu. Vesti minha valente capa impermeável Burberry e saí na chuva. Vocês não podem imaginar a sensação de liberdade, tendo Florença só para mim, despida das hordas turistas. Pude observar detalhadamente a placa no chão da Piazza dela Signoria, QVI FU IMPICCATO ED ARSO FRA GIROLAMO SAVONAROLA, “aqui foi enforcado e incinerado Girolamo Savonarola”, evocando o frade rebelde executado em 1498. Ou atravessar o rio Arno pela Ponte Vecchio. Ou simplesmente vagar pelas ruas de pedras seculares. Numa de minhas andanças noturnas ouvi música de piano emanando da igreja do Santo Spirito, era o concertista chileno Claudio Arrau numa apresentação gratuita, interpretando a Sonata Les Adieux de Beethoven. 

Sonata No. 26 in E-flat Major “Les Adieux”, Op. 81a: II. Abwesenheit (Andante espressivo) - YouTube 

Clique AQUI 

Em Londres continuei a saudável prática – propícia a resfriados ou a uma eventual pneumonia – no meu “quadrilátero sobre o Tâmisa”: a extensão do Embankment na margem norte e a do Battersea Park na margem sul do rio, ladeadas pelas pontes Albert e Chelsea, quatro quilômetros de percurso. Uma vez me aventurei um pouco mais longe para o sul, até Clapham Common, onde ficava o prédio de Graham Greene destruído por uma bomba na Segunda Guerra. Ele localizou ali a casa da amada em The End of the Affair /Fim de caso (1951). No romance, meu favorito de GG, a heroína morre de uma infecção pulmonar agravada por ter caminhado na chuva em Clapham Common. 


Hoje vejo flanar na chuva como uma atividade sem futuro. A temperatura amena que ela requer foi violentada pelo aquecimento global. Há violência nas ruas, balas perdidas prontamente achadas. 

E os humanos passaram a preferir capas de chuva berrantes de PVC. 

Impermeáveis da Burberry se tornaram exclusividade do pet elegante...

domingo, 16 de julho de 2023

Meu encontro (literal) com Jane Birkin • Por Roberto Muggiati

Jane Birkin morreu aos 76 anos. A causa da morte não foi divulgada.
 Há alguns anos a atriz e cantora sofreu um AVC. 


Com Serge Gainsburg.


Em Cannes, também com Gainsbourg.

Em 1969, ela concorreu ao Festival Internacional do Filme
do Rio de Janeirocom o longa Wonderful 

Jane Birkin chocou as plateias ao currar, com uma amiga, o fotógrafo do filme Blowup (1966), de Antonioni. De periguete anônima nessa cena de sexo explícito, a atriz londrina saltou para protagonista em Wonderwall (1968), com trilha sonora assinada pelo beatle George Harrison. Depois de um casamento-relâmpago com o compositor John Barry, Birkin iniciou um relacionamento com o ator-chansonnier  Serge Gainsbourg, quando contracenaram no filme Slogan. Em 1969, Gainsbourg e Jane gravaram o dueto  Je t'aime... moi non plus. Ele havia escrito a música para Brigitte Bardot, com quem tivera um caso antes de conhecer Jane. Je t’aime provocou um escândalo mundial: interpretada aos sussurros, a canção simulava uma relação sexual, com direito a um orgasmo, encenado (ou, segundo alguns, real) de Jane. Sua execução foi banida nas rádios da Espanha, Islândia, Itália, Iugoslávia, Polônia, Portugal, Reino Unido, Suécia e denunciada publicamente pelo Vaticano. No Brasil, a ditadura militar, rápida no gatilho, proibiu prontamente a canção.

Ouçam AQUI

Je t'aime moi non plus Legendado.Serge Gainsbourg & Jane Birkin -Original videoclip - YouTube

Apesar da imagem festiva na cama, o casamento não se segurou. Jane descreveu Serge como “um homem muito difícil, alcoólatra e violento. ”  A filha, Charlotte Gainsbourg, 51 anos, teve a sorte de herdar o melhor de cada um e se tornou uma grande atriz, com atuações marcantes em Melancholia e Ninfomaníaca. 

Por conta da disponibilidade do repórter, tive com a jovem Jane Birkin um contato físico que eu poderia descrever no mínimo de bizarro. Foi durante a cobertura do 2º Festival Internacional do Filme do Rio de Janeiro, em março de 1969, a serviço da revista Veja, da qual era editor de Artes e Espetáculos. Acompanhava os tititis crepusculares (com duplo sentido) das celebridades na pérgula do Copacabana Palace quando o eterno moleque Roman Polanski arremessou Jane Birkin na piscina famosa. A atriz passou raspando como um rojão, ainda tentou se agarrar a mim, mas felizmente não me levou no seu mergulho azul – logo eu, totalmente enfarpelado. Polanski concorria no festival com o sinistro O bebê de Rosemary, meses antes de ter a mulher Sharon Tate, com bebê na barriga, chacinada em Los Angeles pelos fanáticos do bando de Charles Manson. Jane Birkin representava o filme Wonderwall no festival carioca. O prêmio Gaivota de Ouro coube ao épico hípico argentino Martin Fierro, que nada tinha a ver com aquele mundo maluco em que vivíamos então.

sexta-feira, 14 de julho de 2023

Quem detonou a Bastilha? O Marquês de Sade, ora... • Por Roberto Muggiati

 

O povo unido contra a Bastilha 

Sade ajudou a insuflar os parisienses 

Peça de Peter Weiss: A perseguição e assassinato de Jean-Paul Marat

Mais um 14 Juillet, não chega a ser uma data redonda, 234 anos desde que cidadãos parisisenses revoltados pegaram em armas e destruíram a prisão-símbolo do autoritarismo e da opressão. Aproveito para contar uma história que só mais recentemente os historiadores trouxeram à tona. Uma pessoa de dentro da Bastilha exerceu um papel determinante para a invasão e derrubada do presídio: o Marquês de Sade, que ocupava lá uma pequena cela. Em 2 de julho de 1789, a turba enfurecida já rondava o prédio e as autoridades reforçaram a segurança. Transformando em megafone um funil de metal usado para despejar o esgoto de sua privada, Sade foi à janela e começou a berrar para o populacho por entre as grades que os carcereiros assassinos estavam torturando e degolando os prisioneiros, a maioria deles gente de bem que se opunha politicamente à monarquia. Em represália, o comandante da Bastilha o despachou, “nu como um verme”, para o asilo de loucos de Charenton, lacrando a cela com seus pertences, pelos quais Sade chorou “lágrimas de sangue”: “Mais de 100 luíses de móveis, algumas obras e – o irreparável – quinze volumes de meus manuscritos.”

O diretor do asilo de Charenton, Monsieur de Coulmier, considera o teatro uma excelente forma de terapia e constrói um palco com uma arquibancada de 40 lugares. Sade encontra aí uma oportunidade para exercer seu talento de escritor. Parisienses chiques disputam os lugares destinados aos pacientes. O episódio inspiraria, em 1963, a peça de Peter Weiss A perseguição e assassinato de Jean-Paul Marat encenado pelos internos do Hospício de Charenton sob direção do Senhor de Sade, abreviado para Marat/Sade, que eu tive o privilégio de ver em sua estreia em 1964 na Royal Shakespeare Company em Londres, com Patrick Magee no papel de Sade e a estreante Glenda Jackson como Charlotte Corday. Shakespeare, que fazia 400 anos, adorou..

.