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sábado, 8 de outubro de 2022

Manchete, incubadora de imortais • por Roberto Muggiati

Redação da Manchete, 1972: Ruy Castro e Narceu de Almeida, repórteres da revista,
Foto Acervo Pessoal.

Mais um das nossas cores vai integrar os quadros da ABL. Com o ingresso de Ruy Castro na Academia Brasileira de Letras, a revista Manchete amplia a lista de seus redatores eleitos para a casa de Machado de Assis. Citando à vol d’oiseau, foram o romancista Josué Montello (1954), o teatrólogo e ensaísta R. Magalhães Jr (1956), o jornalista e educador Arnaldo Niskier (1984), o jornalista e poeta Ledo Ivo (1986), o jornalista e escritor Murilo Melo Filho (1999), o historiador e ensaísta Afonso Arinos Filho (1999), o jornalista e romancista Carlos Heitor Cony (2000), o jornalista e escritor Cícero Sandroni (2004).

Paulo Coelho inova: fardão
com espada de samurai.
Esqueci alguém? Sim, logo ele, o homem que mais vende livros no mundo, Paulo Coelho, eleito em 2002 na sucessão de Roberto Campos e recebido por Arnaldo Niskier. Mas o que tem o “mago” a ver com a Manchete

Pouca gente sabe, mas Paulo foi correspondente da revista em Londres no final dos anos 70. Editor da revista na época, lembro de poucas pautas suas: uma matéria sobre o Museu Sherlock Holmes na Baker Street, outra, tipo relatório oficial, sobre a despoluição do rio Tâmisa. Talvez já estivesse tramando as alquimias que fariam dele o autor da obra mais traduzida do mundo, segundo o Livro Guinness dos Recordes.

Tem também uma vinheta histórica envolvendo o radialista da Manchete Roberto Canazio. Funcionário da Academia Brasileira de Letras, ele aparece numa foto segurando a urna em que foram incinerados os votos por carta da polêmica eleição de 1975 em que o ex-presidente JK foi derrotado pelo obscuro escritor goiano Bernardo Elis.

Como saideira, gostaria de lembrar o envolvimento de Ruy Castro, repórter iniciante de Manchete, em 1967, com a posse de Guimarães Rosa na Academia Brasileira de Letras. A memória foi escrita por Ruy 50 anos depois para a Folha de S. Paulo e reproduzida no Panis. Leia a seguir.


SEXTA-FEIRA, 17 DE NOVEMBRO DE 2017

A entrevista que não houve

por Ruy Castro (para a Folha de São Paulo)


RIO DE JANEIRO - Por esses dias de novembro de 1967, há inacreditáveis 50 anos, eu estava telefonando para Guimarães Rosa em nome da revista "Manchete", pedindo uma entrevista.

Naquela semana, Rosa finalmente tomaria posse de sua cadeira na Academia Brasileira de Letras, para a qual fora eleito por unanimidade em 1963. Ainda não a assumira porque, médico e cardíaco, temia não sobreviver à cerimônia. Mas agora era a hora.

Nunca entendi por que Justino Martins, diretor da "Manchete", me confiou a tarefa. A revista estava cheia de repórteres experientes —dois deles os poetas Lêdo Ivo e Homero Homem, certamente amigos de Rosa. Eu tinha, se tanto, seis meses de profissão e acabara de chegar à "Manchete". Mas foi assim. Justino convocou-me à sua mesa, deu-me o número do telefone de Rosa e só me recomendou que chamasse o homem de embaixador —o que Rosa também era.

Naquele mesmo dia, telefonei. O próprio Rosa atendeu e, muito amável, se desculpou, alegando que estava escrevendo seu discurso de posse e não podia parar para dar entrevistas, mesmo que fosse para "Manchete". Eu insisti, "Mas, embaixador...". E ele, firme. Talvez tocado pela evidente juventude do repórter, sugeriu que eu telefonasse no dia seguinte —quem sabe já teria terminado o discurso. Fiz isto, mas, não, ele não havia terminado. Como consolação, disse que, se eu fosse à cerimônia, me daria uma cópia do texto.

Rosa tomou posse na quinta-feira, 16. Ao fim do discurso e sob a chuva de aplausos, saiu pelo salão apertando mãos, como se levitasse. Parecia encantado, não via ninguém –só a mim cumprimentou duas vezes, sem saber quem eu era. E o coração resistiu bem, não o traiu.

Deixou para traí-lo três dias depois, na noite de domingo, 19, no seu apartamento, em Copacabana.

E eu me esquecera de pedir-lhe o discurso.

domingo, 17 de outubro de 2021

Abobrinhas: quem nunca?

 

Reprodução Estadão. Clique 2x na imagem para ampliar

Reprodução Folha de São Paulo

Sergio Augusto levantou a bola (no Estadão), Ruy Castro matou no peito (na Folha). 

Ambos escreveram sobre as abobrinhas do cinema. 

por José Esmeraldo Gonçalves

Abobrinhas eram os muitos bytes de informações que eram guardados na memória dos jornalistas cinéfilos. Se eram úteis? Vá saber. Mas rendiam horas de bom papo. Na redação da Manchete e da Fatos & Fotos as abobrinhas eram chamadas de trívias. No caso, a palavra indicava uma espécie de jogo: o da arte de responder questões aleatórias pouco ou nada conhecidas sobre atores, atrizes e filmes. Na Manchete raros tinham a chave do portal que levava àquela dimensão oculta de Hollywood. O próprio Ruy Castro, Roberto Muggiati, George Gurjan, José Guilherme Corrêa e Valério de Andrade. Estes formavam o conselho supremo da trívia no tempo em que o Google não estava lá para revelar que Humphrey Bogart era careca ou que Marylin Monroe tinha QI maior do que o de Isaac Newton, entre outras deliciosas digressões.

Um dos diagramadores da Manchete, J.A. Barros, também cinéfilo, costumava aplicar um desafio aos críticos de cinema que adentravam a redação. Era o Teste Guilaroff. De repente, como se sacasse um revólver Peacemaker na Main Street de Tombstone, Barros disparava a  pergunta; "Você sabe quem é Sydney Guilaroff?"  Nove em dez vezes o crítico rateava. Era a deixa que o Barros esperava para fazer uma bio do personagem hollywoodiano que ele identificara nos minúsculos créditos antes do the end de muitos filmes. E Guilaroff era figura importante como se vê no link abaixo em post de Roberto Muggiati sobre o teste que, para o seu criador, o Barros, separava os cinéfilos de raiz do resto da humanidade.

 https://paniscumovum.blogspot.com/2021/02/o-teste-guilaroff-de-cinefilia-por.html

quinta-feira, 20 de maio de 2021

Onde anda você, Silvinha Maconha? • Por Roberto Muggiati


Não sou saudosista, curvo-me à dinâmica do tempo. De repente o futuro acontece e vivo um presente intenso que logo vira matéria de memória. Com uma diferença: aos 20 anos, eu não valorizava cada segundo como valorizo hoje, aos quase 84. Uma coisa é certa: os anos 1950 foram divinos...

Foi ouvindo jazz numa tarde de domingo na Boate do Hotel Plaza que conheci Silvinha Maconha. Voltava para Curitiba de uma daquelas viagens boca-livre da época, o Congresso Nacional dos Jornalistas em Fortaleza. Oportunidade também de fazer turismo. Em Fortaleza, fiz um empolgante passeio de jangada e, no aristocrático Clube Náutico, dancei com a filha do governador Parsifal Barroso. No Recife, conheci a Praia da Boa Viagem e provei o sarapatel famoso do Buraco da Otília. Em Salvador fui à Lagoa do Abaeté e depois comi um peixe frito inesquecível numa birosca de sapê na praia de Itapoã. O Rio ficou para o fim de semana, antes de pegar o batente segunda à noite na Gazeta do Povo. Era setembro de 1959, havia algo no ar além dos aviões de carreira: a corrida espacial URSS vs EUA. No dia 14, a sonda Luna 2 tornava-se o primeiro objeto da Terra a atingir a Lua. O foguete foi esterilizado para não contaminar o querido satélite com bactérias terrestres – vejam só como nós, terráqueos éramos atenciosos, até os comunistas... No dia 20, domingo, fim de tarde, eu e dois amigos jornalistas da minha idade ocupávamos uma mesa estratégica no Bar do Hotel Plaza, em Copacabana. Aconteciam ali jam sessions que ficaram famosas, jovens músicos como os irmãos Castro Neves começavam a fazer o seu nome. O jazz era a trilha sonora da nossa geração, que pautava seu estilo de vida naquele dos beats.

Ainda não se falava em revolução sexual, mas ela nos aguardava ali na esquina. Eu já me via totalmente fora do esquema ancestral noiva virgem + diploma = casamento. Sonhava com uma paixão existencialista, amor e sexo no mesmo pacote. E foi assim que surgiu do nada, no bar do Plaza, a garota da hora, sacudindo a cabeça ao suingue do bebop. Estava a poucas mesas de distância, eu a vi, ela me viu, nossos olhares não se desgrudaram mais. Como eram longos aqueles improvisos de jazz... No primeiro intervalo, fui até ela e a convidei à nossa mesa. Ofereci do nosso uísque, éramos aqueles rapazes curitibanos de terno e gravata que bebiam com o litro de Scotch na mesa. A música nos impedia de conversar, era tudo o que queríamos. Saímos para tomar um ar, a tarde caía na Prado Júnior, a rua lavada por uma pancada prenunciando a primavera. 

– Para onde vamos? – tateei.

– Hotel Cardoso. Chame aquele táxi ali. 

O táxi pegou a Avenida Atlântica rumo ao Vidigal. Ainda em Copacabana, minha companheira de viagem abre intempestivamente a janela do táxi e saúda a Princesinha do Mar com um generoso jato de vômito. Bebendo a tarde toda de barriga vazia, o upgrade da cerveja para o uísque foi fatal. O Cardoso, vovô dos motéis cariocas, ficava no começo da Niemeyer, perto do local onde plantariam o Sheraton nos anos 70. Um hotelzinho modesto, três andares, sem elevador, muito distante da futura arquitetura de motel de ostentação brega que assolaria o Rio. Minha amiga encontrou no banheiro um pequeno tubo amarelinho de Kolynos e o esgotou escovando os dentes com os dedos. Existencialistas com toda razão, fizemos o que mandava o nosso coração.


Na volta, pediu que a deixasse na domingueira que ainda rolava na casa de Aníbal Machado, na Visconde de Pirajá. Não trocamos telefones, acho que ela nem ficou sabendo meu nome. E como foi que eu descobri quem ela era? Acho que alguém disse aos meus amigos curitibanos no bar do Plaza: “Aquela é a famosa Silvinha Maconha.” Com o tempo, fui sabendo mais. Ruy Castro, que fez a arqueologia daqueles tempos em Ela é carioca/Uma Enciclopédia de Ipanema, traçou um miniperfil da musa: 

“A própria Silvinha ‘Maconha’ (n. 1934) tinha esse nome não por fumar maconha (pelo menos na época, ninguém a via usar o produto), mas por parecer ainda mais ‘marginal’ que a média das moças do Arpoador. Era morena, usava óculos escuros de Marlon Brando em O selvagem e tinha uma cicatriz no queixo (caíra da garupa de uma moto.) O que a tornava diferente das outras era o fato de ser bem liberal a respeito de com quem ia para o banco do jipe ou do Chevrolet – um dos privilegiados, Jomico Azulay, sete anos mais moço do que ela, definiria sua noite com Silvinha como ‘o mundo antes e depois de Copérnico’. Mas era também querida e respeitada: escrevia contos, recitava Jacques Prévert  (‘Rappelle-toi, Barbara/ Il pleuvait sans cesse sur Brest ce jour-là...’) e era assídua às jam sessions do Beco das Garrafas. As amigas a viam como ‘mais livre’, só isso.”

Que pena, não vi o mundo antes e depois de Copérnico com Silvinha, mas guardo do episódio – talvez justamente por causa dos seus desacertos – uma bela lembrança.

Outro dia me veio à cabeça: “A Silvinha, com 87 anos, seguramente já tomou a segunda dose da vacina”. Onde anda você, Silvinha Maconha? Você bem que podia me aparecer para trocarmos figurinhas sobre aquela tarde de setembro que nem sei mais ao certo se aconteceu...

terça-feira, 24 de novembro de 2020

O Vilarino fechou. E dai? Sempre teremos a Spaghettilândia! • Por Roberto Muggiati



Mais um templo da boemia carioca cerrou suas portas por causa da pandemia e outras mazelas nossas: o Vilarino, o sacrossanto local do encontro de Antônio Carlos Jobim e Vinicius de Moraes. Mas nem tudo está perdido: a Spaghettilândia segue aberta. O leitor poderá interpelar: e que diferença faz,? Qual a contribuição da Spaghettilândia (!) para o patrimônio sociocultural brasileiro? Enorme, imensa, digo eu – e tomo a liberdade de transcrever uma crônica do confrade-in-Panis Ruy Castro endossando minha opinião:





 

 

São Paulo, sábado, 13 de agosto de 2011

 

 

RUY CASTRO

O mistério da Spaghettilândia

RIO DE JANEIRO - Dois grandes poetas, Augusto de Campos e Ferreira Gullar, estão brigando pela Folha a respeito de Oswald de Andrade. Começou quando Gullar, na Ilustrada, mencionou um almoço com Augusto na Spaghettilândia, no Rio, em 1955, em que, segundo Gullar, Augusto teria se referido a Oswald como "irresponsável", alguém a não se levar muito a sério numa possível revolução da poesia brasileira.
Em réplica, Augusto negou que tivesse havido tal encontro na Spaghettilândia. Na tréplica, Gullar confirmou o almoço e deu a localização do restaurante. Disse que era perto do jornal onde trabalhava. Ora, como os jornais do Rio ficavam no centro, só pode ser a Spaghettilândia da rua Álvaro Alvim, na Cinelândia - não a de Copacabana ou a do Largo do Machado, que eram suas filiais. Talvez isto jogue alguma luz na refrega.
Gullar reforçaria seu argumento se dissesse o que comeram -se é que comeram -, mas ainda não fez isto. Como ex-cliente da Spaghettilândia, posso arriscar alguns palpites. O forte do cardápio, vide o nome, era o espaguete, ao sugo ou à bolonhesa, sempre cozido demais, ou uma lasanha cujas lâminas de massa, presunto e mozarela também não eram de deixar saudade.
Augusto, como bom paulistano e desconfiado das massas cariocas, não se passaria por essas sugestões, donde esnobaria o nhoque e a goela de pato da Spaghettilândia. Se o almoço de fato aconteceu, é mais provável que ele tenha optado pelo frango a passarinho ou por um infalível strogonoff, com pudim de Leite Moça na sobremesa. E, como nenhum dos dois era de beber, devem ter regado tudo com Caxambu.
Acho comovente que a humilde Spaghettilândia, de pé até hoje e no mesmo lugar, fosse cenário de um almoço tão importante para os destinos da poesia nacional. Almoço esse de repente sub judice, com o garfo a meio caminho.

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PS (RM)Para encerrar: jornalista curitibano, na minha primeira incursão ao Rio de Janeiro, em março de 1955, hospedado no apartamento de uma tia, eu costumava comer na Spaghettilândia de Copacabana. Como o Ruy descreve, a comida da Spaghettilândia não era de deixar saudade – mas seus preços eram imbatíveis e a ambiência da Capital Federal persiste em minha memória até hoje. Copacabana era um bairro elegante, suas ruas e calçadas impecavelmente limpas, as pessoas bem vestidas. Sua Spaghettilândia, a maior de todas, vivia cheia de gente que ainda sabia o que era ter um emprego: lojistas, balconistas, bancários, jornalistas, estudantes e professores, funcionários públicos (os chamados “barnabés”).

Tive uma ideia: já que a pandemia impede o presencial, acho que vou providenciar uma delivery de sabor proustiano da Spaghettilândia para o Ruy Castro no seu apê do Leblon. O que vai ser, Ruy? Spaghetti ou lasanha? Será que ainda servem a famosa goela de pato?

Recortes do Vilarino na Manchete (1952, 1953 e 1975










segunda-feira, 4 de maio de 2020

Trinta e cinco anos sem Narceu • Por Roberto Muggiati

Domingo, cinco de julho de 1964: Muggiati, Sabino e Narceu na Catedral de Rouen, voltando para Londres
de uma visita a Vinícius de Moraes em Paris. Foto: Arquivo Pessoal 

Sexta-feira, 3 de maio de 1985. Chego cedo à redação, ainda vazia, vai ser um dia morno, poucas matérias serão fechadas, o maior número de páginas fica para o sufoco do fechamento final da revista na segunda-feira. Minutos depois chega o Alberto (de Carvalho), a redação está na penumbra, poucas luzes foram acesas. Numa voz soturna, para dentro, diz: “Nasceu, morreu.” Perturbado, sem querer entender o que ouvi, protesto: “Pô, Alberto! Quem nasceu e morreu?” Alberto não queria também dar a notícia, coitado. Mas disse, firme e pausadamente: “Muggiati, o Narceu morreu esta madrugada.”

De infarto, aos 52 anos.

Narceu de Almeida Filho: minha história com ele começa 22 anos antes, em Londres, 1963, na BBC. Jornalista conhece um mundo de gente, mas nunca tem tempo e oportunidade para fazer amigos. Narceu foi um dos meus maiores amigos, contados na ponta dos dedos de uma mão. Como Programme Assistant do Serviço Brasileiro da BBC, além de traduzir, escrever e ler textos das transmissões para o Brasil, eu contratava matérias dos raros free lancers que apareciam por lá. (Para se ter uma ideia, nas eleições de 1962 compareceram ao consulado do Brasil em Londres pouco mais de 60 eleitores, era o número de nossa diminuta colônia na capital britânica então. Nada a ver com o contingente de brasileiros da Swinging London de 1966 e menos ainda com a patuleia de jovens que acorreu em massa à London London de Caetano e Gil no início dos anos 70).

Lembro a colaboração inicial do Narceu, foi uma brilhante resenha do filme estreado naquele ano de 1963, Tom Jones – tanto o filme como o diretor, Tony Richardson, ganharam o Oscar.
Narceu tinha 30 anos, eu 25. Independente, ele tinha um carro, daqueles primeiros modelos compactos britânicos – um Morris Mini Minor. Frequentávamos o clube de jazz Ronnie Scott’s, ainda em seu endereço original no 39 da Gerrard Street, no Soho, uma arapuca à qual você descia  por uma escada estreita num ângulo quase de 90 graus, sem janelas, um incêndio ali e em poucos minutos virávamos cinzas. Mas milagres aconteciam, principalmente em Londres, como reza a letra de Ira Gershwin em A Foggy Day, “The age of miracles hadn’t passed...” O próprio Ronnie Scott – uma mistura redundante de judeu e escocês – cuidava da casa, dos ingressos (você pagava uma libra anual e se tornava sócio do “clube”) à cozinha, da apresentação dos shows, com seu humor esperto, à própria participação como músico, tocava um sax tenor profissional e honesto. O consumo etílico na Inglaterra era subordinado a um emaranhado de leis (na maioria de fundo moralista), depois da meia-noite, para beber, você tinha de encomendar alguma comida. Lá pelas duas da madrugada você saía com uma meia dúzia de Scotches na cabeça e deixava sobre a mesa pilhas de hambúrgueres e sanduiches intocados. Numa daquelas noites, ao sair, não vimos nenhum traço do nosso Mini Minor. O carrinho tinha sido rebocado por estacionamento ilegal. Até nessas coisas os ingleses são organizados, havia uma placa no local indicando onde resgatar o veículo, Sem problemas, uma hora depois estávamos rodando de novo pelas ruas desertas de Londres. Eu morava em Chelsea, à beira do Tâmisa; o Narceu num lugar de nome poético, mais para o norte, Swiss Cottage.
A mobilidade do carro nos permitia outros programas culturais. Num sábado de agosto fomos ao Festival de Teatro de Chichester ver uma versão do Tio Vânia dirigida e interpretada por Sir Laurence Olivier, com sua mulher Joan Plowright e Sir Michael Redgrave no papel de Tio Vânia.

Nessa época eu estava encalacrado (a palavra obsoleta diz tudo) num caso amoroso sem futuro, mas com um presente intenso. A jovem em questão era casada com um diplomata da nossa embaixada. Eu a visitava uma vez por semana, nas tardes de segunda ou terça, meus dias de folga na BBC, por trabalhar nas transmissões diretas da meia-noite à uma da manhã aos sábados e domingos. Tínhamos tudo a ver, ela morava em Chelsea, perto de mim, os filhinhos – um menino, uma menina – dormiam no andar de cima, na sala de estar tomávamos chá e discutíamos Proust, ou o que fosse – é sempre Proust nestas horas – uma madeleine e nada mais, para minha imensa frustração. Às vezes, lá pelas seis horas, o marido chegava cansado do trabalho, me cumprimentava cordialmente e subia para o quarto. Tudo muito civilizado, very British... O sapiente e paciente Narceu não só ouvia as lamúrias do pierrô apaixonado como, de certa forma, participava indiretamente daquela louca aventura amorosa.

Em 1964 entra em cena Fernando Sabino, nomeado adido cultural do Brasil em Londres poucos meses antes do golpe militar. Em carta de 13 de abril de 1964 a Otto Lara Resende, Sabino escreve: “O meu amigo aqui se chama Narceu de Almeida (também não é mineiro, mas parece) – um jornalista daí que trabalhou no Estado de S. Paulo, passou pela Thompson, etc e veio dar com os costados em Londres, Ótimo sujeito, escritor, 30 anos, goiano, excelente companheiro.” (Cartas na mesa, Record, 2002). Baterista amador e grande aficionado de jazz, Sabino passou a nos acompanhar nos programas noturnos – Londres era passagem obrigatória dos maiores músicos, lembro-me de ter ouvido com Sabino e Narceu os tenores de Stan Getz e Sonny Rollins, o piano de Bill Evans. Na manhã de quarta-feira, 1º de julho de 1964, na Mini Minor do Narceu, pegamos a estrada rumo a Paris, Sabino ia visitar Vinícius de Moraes, que trabalhava no consulado. Narceu e eu desfrutamos também da companhia do poetinha e de seus parceiros da hora, Baden Powell e a bela Odete Lara, com quem Vinicius gravou um LP fabuloso para a Elenco: doze composições de Baden e Vinícius com arranjo e regência de Moacir Santos e produção de Aloysio de Oliveira,

Sábado de Aleluia, 17 de abril de 1965, em Cambridge. Narceu entre Lina Muggiati e Celina Luz. Foto; Arquivo Pessoal

Essa viagem, mal sabia eu, seria responsável por meu primeiro casamento. Conheci Lina, casada com um dos maiores doleiros do Rio, Daniel Tolipan, e amante de um arquiteto francês, Jerôme. Francês tem amante, mas não larga a família jamais de la vie. Dentro de seis meses Lina estaria morando comigo em Londres – uma tremenda responsabilidade substituir marido e amante. Narceu e eu nos afastamos por um período, ele havia iniciado, via Sabino, negociações com Adolpho Bloch para assumir a chefia do principal escritório europeu da Manchete, a cidade escolhida foi Paris por ter voo direto para o Rio. Antes disso, o Narceu teve uma estranha incumbência. Ia com seu carrinho a Aylesbury, onde o jornalista Assis Chateaubriand, ex-embaixador do Brasil na Inglaterra, estava internado num centro neurológico desde que sofrera uma trombose em 1960. Embora paraplégico, Chatô conseguia, com a ajuda de fiações amarradas aos dedos, como aquelas de marionetes, teclar a sua máquina de escrever, a fim de mandar o artigo diário para seus jornais. Narceu pegava aquelas páginas empasteladas, fazia o devido “copidespe” (como dizia o Adolpho) e despachava o artigo limpo para o Brasil. Fazia todo dia a viagem de 60 quilômetros a Aylesbury – 120 km ida-e-volta.

Na Páscoa de 1965, Narceu nos visitou no apartamento de Embankment Gardens com a Celina Luz, um jornalista curitibana velha amiga, filha de pastor que lia Henry Miller às escondidas. No carrinho do Narceu, Celina, Lina e eu visitamos Cambridge no dia 17 de abril, sábado de Aleluia. E eu não conhecia a Universidade de Cambridge – minha alma mater via Cultura Inglesa – excepcionalmente nevou naquele dia. Pouco depois, Lina começou a mostrar a que viera. Me fez desfazer a prorrogação de contrato por dois anos que tinha assinado com a BBC. Invariavelmente, quem continuava lá, continuava para sempre. Hoje eu seria um plácido pensionista do Brexit, em vez de suportar as agruras de aposentado do INSS por aqui, jornalista com 66 anos de carreira sem trabalho. Mas Lina ambicionava, no mínimo, ser embaixatriz, e decidiu que eu voltaria para tentar o Itamaraty. É um exame que não se faz em cima da hora. Fiz e não passei. Tínhamos alugado a casa-ateliê do pintor Loio Pérsio em Santa Teresa, fomos expulsos por uma praga de camundongos e tivemos de nos refugiar no pequeno apartamento do sogro no Leblon. Foi quando reencontrei o Narceu, que viera ao Rio por conta do I Festival Internacional de Cinema, comemorando os 400 anos da cidade.

Honor Blackman no Baile das Celebridades, em 1965, no Rio. A atriz participava do
festival internacional de cinema que homenageou o 4° Centenário da Cidade Maravilhosa.
Foto Manchete/Reprodução

E no filme Goldfinger contracenando com Sean Connery. Foto: Divulgação

Narceu de Almeida teve um caso com Honor Blackman. Ele entrevistou a atriz
para a Manchete. No texto uma revelação: a bondgirl adiou a volta a Londres
por três semanas para "conhecer melhor o Rio". 

Um pouco sobre a personalidade do meu amigo goiano-mineiro. O Narceu tinha uma enorme dificuldade de falar. Às vezes abria a boca e não saía nada. Nem a leitura labial ajudava, seus lábios quase não se mexiam. Pois não é que no voo de Londres para o Rio o Narceu veio sentado ao lado da exuberante Honor Blackman? Faixa preta de caratê, a moça brilhava no terceiro filme da série, 007 contra Goldfinger, fazendo a Bond Girl com o sugestivo nome de Pussy Galore – algo como Xota a Granel...  Ninguém sabe o que se passou na meia-luz da travessia transatlântica, o fato é que a Honor Blackman desceu as escadas no Galeão com um namorado brasileiro a tiracolo – nosso bom Narceu. Podem imaginar o frisson que atacou os bravos rapazes da imprensa? No ano anterior tivemos de recorrer a um playboy marroquino metido a brasileiro, Bob Zagoury, para conquistar Brigitte Bardot em Búzios...

Terminado o festival, o Narceu, posto em sossego, me procurou. Depois da reprovação no Itamaraty, fui recomendado para o Rogério Marinho no Globo, que me encaminhou ao chefe de reportagem Alves Pinheiro, que me botou imediatamente a trabalhar. Fui ao Hotel Glória cobrir um congresso internacional da Interpol. O transporte do Globo era complicado, tinha de telefonar de um orelhão para uma central de rádio, enfim esperei mais de uma hora pelo carro que me levou à redação da Rua Irineu Marinho que, desde o começo, me pareceu sinistra e cheia de bad vibes... Bati a matéria na máquina – como dizia um coleguinha nosso, para ele escrever não passava de uma atividade física – botei o texto na mesa do Alves Pinheiro, eu tinha ido fazer uma boquinha na lanchonete da esquina, e nunca mais voltei a pisar na redação de O Globo. Narceu caiu do céu. Lina e eu o recebemos com uma garrafa de bom Scotch no apartamento da Rita Ludolf, em cima da farmácia Piauí – os sogros estavam na casa da ilha de Paquetá. Narceu me animou a procurar a Manchete. “Você vai encontrar o Ricardo Gontijo e o Zuenir.” Ricardo era irmão do Antônio Fernando, meu colega de BBC que morreu afogado em Málaga. Zuenir Ventura fora meu colega de bolsa no Centre de Formation des Journalistes em Paris, em 1960.

O quadro de Harry Elsas no restaurante da Frei Caneca:
dramaticidade expressionista inibia apetites. 
Dois ou três dias depois adentrei o prédio de Frei Caneca, você tinha de caminhar meio quilômetro entre máquinas sucateadas até um elevador de carga que servia o prédio de oito andares nos fundos, onde ficavam as redações, a administração e o restaurante. No oitavo andar, o restaurante tinha uma peculiaridade: uma parede enorme coberta por um mural do Harry Elsas, um pintor do século 20 que se imaginava Hyeronymus Bosch, o que estava longe de ser. A comida de Frei Caneca era ótima, sempre teve a fama de ser melhor do que a do Russell, mas o painel do Harry Elsas era um grande inibidor do apetite.

As coisas aconteciam rápido demais na Bloch, Zuenir não estava mais lá, tinha brigado com o Adolpho e se mandado. Também rapidamente o Jaquito e o Arnaldo Niskier foram com a minha cara. “Veio da BBC? Que bacana! Pode começar depois do feriado como repórter especial?” Dito e feito. O 15 de novembro caiu na segunda, terça-feira eu estava lá para iniciar o que jamais imaginaria seriam 35 anos de Manchete, um bom pedaço – o melhor talvez – da minha vida.

Terça-feira, 17 de dezembro de 1972: na redação da Manchete,  Narceu, 39 anos, com o jovem Ruy Castro, 24 anos.
Foto: Arquivo Pessoal

Narceu chefiava a sucursal de Paris com seu fiel escudeiro, o fotógrafo Alécio de Andrade, mestre da Leica que entraria para o seleto clube da Magnum. Eram os anos da contracultura, a Revolução Cultural anteciparia Maio de 68. Para Adolpho Bloch Paris era luxo puro, adorava ser recebido com tapete vermelho nos melhores restaurantes, segundo o Protocolo Sylvio Silveira que seria consagrado a seguir. Horas antes de Adolpho embarcar para o Rio, Sylvio o levava à melhor casa de queijos de Paris e forrava bolsas térmicas de queijos de todas as variedades, Adolpho voltava direto do aeroporto para a Manchete, convocava seus favoritos e fazia a distribuição. Além de queijos, eu recebia patês e às vezes um potinho de caviar. Não fazia parte do figurino do Adolpho e da Lucy (Lucy Mendes foi Miss Rio Grande) encarar o Narceu e o Alécio num bistrô enfumaçado da rive gauche com duas garotas punk de boina coroada pela estrela vermelha. Adolpho ficou com aquilo atravessado na garganta. Um dia, encontrou o pretexto que procurava, na mesa de edição do Justino: fotos da namorada do Narceu seminua distribuídas por uma agência internacional. Já com a decisão tomada, Adolpho convocou o Sabino e a mim – nunca me dirigira a palavra até então – para sermos seus avalistas. “Essa mulher está desgraçando a vida do Narceu! Ele precisa voltar para o Brasil já, senão estará perdido.” Almoçando com Adolpho no restaurante de Frei Caneca, sob os olhares sorumbáticos dos judeus do Harry Elsas, nada tínhamos a dizer, Sabino e eu. Nosso silêncio estupefato selou o destino do Narceu. Logo depois ele voltava ao Rio para trabalhar como redator da Manchete.

Um corte rápido para 1970. Editor de EleEla, Carlos Heitor incumbiu a repórter Ana Maria de Abreu de entrevistar jornalistas conhecidos sobre seu filme de amor preferido. Ana Maria procurou o Narceu. Sua love story favorita só podia ser, como ele, romântica e trágica: Acossado/À bout de souffle, de Godard, em que a mocinha (na verdade bandida) entrega à polícia o bandido (na verdade mocinho), que morre com uma bala nas costas. Da entrevista ao casamento, Narceu e Ana Maria viveram felizes quinze anos (com três filhos) até a morte prematura dele.

Depois do AI-5, que proibiu qualquer expressão política, intelectuais e jornalistas que faziam a resistência contra a ditadura militar optaram pelo discurso cultural, Ou melhor, contracultural. Do meu panfletário Mao e a China de 1968, parti para o Rock: o grito e o mito/A música pop como forma de comunicação e contracultura, em 1973. Narceu entrou na onda de maneira mais radical. Amigo dos jornalistas Luiz Carlos Maciel e Luiz Carlos Cabral, que também trabalhavam na Bloch, acabou partindo com eles – e a musa de ambos, a atriz Maria Claudia, casada com Maciel – para uma temporada de vida alternativa na Região dos Lagos. Jaquito, em suas rondas pelas redações, costumava zoar: “O Narceu está jogando pingue-pongue contra o vento!” Quando Narceu voltou para garantir o leite das crianças – iniciara o alfabeto, teve os filhos André e Bruno e Ana Maria estava grávida do César quando ele morreu – Jaquito o colocou punitivamente no regime de frila. “Agora ele está correndo atrás, o Capelinha. Cobra como uma corrida do táxi, de preferência em bandeira 2...” Não faltava humor ao Jaquito, afinal ele cresceu entre os Karamabloch e as víboras das redações. Capelinha era a marca dos taxímetros da época.

Narceu tinha uma qualidade que nem todo jornalista, por mais brilhante e intelectualmente equipado, era capaz de ter: sabia fazer amigos. Assim, ele publicou em O Globo a última entrevista de Vinicius de Moraes e, no EleEla, uma entrevista histórica com Os Quatro Mineiros do Apocalipse: Fernando Sabino, Hélio Pellegrino, Otto Lara Resende e Paulo Mendes Campos.

Na madrugada da sexta-feira, 3 de maio, Ana Maria ligou aflita para o Irineu Guimarães. Ele e o Cícero Sandroni, que morava perto, no Cosme Velho, acorreram (Narceu morava nas proximidades da estação do trenzinho do Corcovado), mas o amigo já tinha morrido de infarto. Partiu silencioso, discreto como sempre. Numa atmosfera que me recorda a de um dos mais belos poemas do século 20, de Dylan Thomas, ele mesmo morto muito cedo, aos 39 anos. Com a palavra Dylan Thomas e o grande tradutor, Ivan Junqueira

NÃO ENTRES NESSA NOITE ACOLHEDORA COM DOÇURA

                    Dylan Thomas • Tradução: Ivan Junqueira

Não entres nessa noite acolhedora com doçura,
Pois a velhice deveria arder e delirar ao fim do dia;
Odeia, odeia a luz cujo esplendor já não fulgura.

Embora os sábios, ao morrer, saibam que a treva
                                               [ lhes perdura,
Porque suas palavras não garfaram a centelha
                                               [ esguia,
Eles não entram nessa noite acolhedora com doçura.

Os bons que, após o último aceno, choram pela
                                               [ alvura
Com que seus frágeis atos bailariam numa verde
                                               [ baía
Odeiam, odeiam a luz cujo esplendor já não fulgura.

Os loucos que abraçaram e louvaram o sol na etérea
                                               [ altura
E aprendem, tarde demais, como o afligiram em sua
                                               [ travessia
Não entram nessa noite acolhedora com doçura.

Os graves, em seu fim, ao ver com um olhar que os
                                              [ transfigura
Quanto a retina cega, qual fugaz meteoro, se
                                              [ alegraria,
Odeiam, odeiam a luz cujo esplendor já não fulgura.

E a ti, meu pai, te imploro agora, lá na cúpula
                                              [ obscura,
Que me abençoes e maldigas com a tua lágrima
                                              [ bravia.
Não entres nessa noite acolhedora com doçura,
Odeia, odeia a luz cujo esplendor já não fulgura.


DO NOT GO GENTLE INTO
THAT GOOD NIGHT

Do not go gentle into that good night,
Old age should burn and rave at close of day;
Rage, rage against the dying of the light.

Though wise men at their end know dark is right,
Because their words had forked no lightning they
Do not go gentle into that good night.

Good men, the last wave by, crying how bright
Their frail deeds might have danced in a green bay,
Rage, rage against the dying of the light.

Wild men who caught and sang the sun in flight,
And learn, too late, they grieved it on its way,
Do not go gentle into that good night.

Grave men, near death, who see with blinding sight
Blind eyes could blaze like meteors and be gay,
Rage, rage against the dying of the light.

And you, my father, there on the sad height,
Curse, bless, me now with your fierce tears, I pray.
Do not go gentle into that good night.
Rage, rage against the dying of the light.

PS – Opções no YouTube: o poema recitado pelo autor, Dylan Thomas, ou pelos atores Anthony Hopkins ou Richard Burton. Recomendo o Burton.

sexta-feira, 14 de dezembro de 2018

Ruy Castro recorda os craques do fotojornalismo do Correio da Manhã



Há poucos dias, Ruy Castro escreveu na Folha de São Paulo sobre uma exposição de fotografias na Caixa Cultural, no Rio, que reúne parte do arquivo do extinto Correio da Manhã. 

O acervo do jornal carioca, hoje guardado no Arquivo Nacional, já foi digitalizado pela Biblioteca Nacional. 

Entre os fotojornalistas do Correio, na década de 1960, estavam Antônio Andrade, Sebastião Marinho, Fernando Pimentel, Rubens Seixas, Rodolpho Machado, Gilmar Santos, entre outros. 

Ruy, que foi repórter do Correio da Manhã em 1967, recorda a época. 

A mostra "Correio da Manhã: Uma revolução de imagens nos anos 1960" registra protestos de estudantes, passeatas e manifestações de artistas, o fechamento do Congresso em 1966; a visita do presidente De Gaulle ao Brasil; o fim da Panair, além do cotidiano do Rio. 

"A exposição é uma grande homenagem aos fotojornalistas brasileiros e em especial aos que atuaram no Correio da Manhã", resume Maria do Carmo Rainho, curadora da mostra. 

Está em cartaz deste outubro e será encerrada no próximo dia 23 de dezembro. 

Ainda dá tempo de conhecer o trabalho de uma brilhante geração de fotojornalistas.

DETALHES SOBRE A EXPOSIÇÃO  NO SITE DA CAIXA CULTURAL, AQUI


quinta-feira, 28 de junho de 2018

Em tempo de "guerra", Ruy Castro lança "A Arte de Querer Bem"

Em tempo de torcidas divididas, trincheiras cavadas e cidadelas erguidas, Ruy Castro celebra seus 70 anos lançando no campo de batalha em que se transformou o Brasil o livro "“A arte de querer bem” (Estação Brasil).

São 70 pequenas crônicas escritas entre 2008 e 2017 publicadas na Folha de São Paulo.

Não procure conflitos nas 256 páginas do livro onde Ruy, que foi redator da Manchete e da Fatos & Fotos no anos 1970, reúne amigos e experiências de vida e narra encontros com personagens que admira, como Braguinha, Pixinguinha, Paulo Francis, entre outros.

Leitura que oferece tréguas e desata armaduras.

terça-feira, 23 de janeiro de 2018

Folha de São Paulo: Arnaldo Niskier e Ruy Castro recordam Cony

A MEMÓRIA DE CONY


por Arnaldo Niskier (para a Folha de São Paulo, 12/01/2018)


Clique na imagem para ampliar


CONY AO PIANO


por Ruy Castro (para a Folha de São Paulo,20/01/2018)

Poucos sabem, mas, em matéria de música, Carlos Heitor Cony gostava mesmo era de ópera. Em música popular, no entanto, tinha dois amores – dois compositores dos anos 1930. Um, brasileiro, Ary Barroso (1903-1964), de quem ficou amigo e com quem conversou muitas vezes. Outro, americano, não era Cole Porter, nem George Gershwin, mas o hoje quase esquecido Nacio Herb Brown (1896-1964).

Brown é o autor das canções ouvidas no filme “Cantando na Chuva” (1952), de Gene Kelly e Stanley Donen. Seu parceiro nelas é o letrista Arthur Freed, produtor do filme e mandachuva dos musicais da Metro durante décadas. Freed era tão poderoso que Kelly, Fred Astaire, Judy Garland e o próprio Vincente Minnelli eram seus subordinados no estúdio. E sua ideia para “Cantando na Chuva” era a de usar as canções que ele e Brown tinham feito no passado, para gloriosos musicais em preto e branco, e costurar uma história ao redor delas.

Entre outras, essas canções eram “All I Do is Dream of You”, “You Were Meant for Me”, “Should I?”, “You Are my Lucky Star”, “Beautiful Girl”, as espetaculares “Broadway Melody” e “Broadway Rhythm”, e a canção-título, “Singin’ in the Rain”. Cony gostava delas desde que as conhecera naqueles mesmos filmes, que vira em criança nos anos 1930.

Corta para o futuro. Por algum tempo, há anos, tive em casa um piano -para as visitas, claro, porque não toco nem “O Bife”. Um dos poucos que se sentaram ao seu teclado foi Cony. E o que ele iria tocar? Sugeri-lhe “Paradise”, “Temptation”, “You Stepped Out of a Dream”, todas de Brown.

Mas Cony preferiu “Alone”, que Allan Jones cantava para Kitty Carlisle em “Uma Noite na Ópera” (1935), dos Irmãos Marx. E, assim, por alguns minutos em pleno século 21, Nacio Herb Brown reviveu no Leblon. 


sábado, 2 de dezembro de 2017

"Trêfego e peralta": Ruy Castro lança livro "deliciosamente incorreto"


Na próxima quinta-feira, 7, a Livraria da Travessa, em Ipanema, receberá o escritor Ruy Castro para lançamento do livro "Trêfego e peralta - 50 textos deliciosamente incorretos" (Companhia das Letras), uma seleção de reportagens, artigos e entrevistas do escritor e jornalista em 50 anos de trajetória profissional. Ruy começou sua carreira de jornalista no Correio da Manhã, em 1967. Nos anos 1970, trabalhou em Fatos & Fotos e Manchete.

sexta-feira, 17 de novembro de 2017

A entrevista que não houve

por Ruy Castro (para a Folha de São Paulo)

RIO DE JANEIRO - Por esses dias de novembro de 1967, há inacreditáveis 50 anos, eu estava telefonando para Guimarães Rosa em nome da revista "Manchete", pedindo uma entrevista.

Naquela semana, Rosa finalmente tomaria posse de sua cadeira na Academia Brasileira de Letras, para a qual fora eleito por unanimidade em 1963. Ainda não a assumira porque, médico e cardíaco, temia não sobreviver à cerimônia. Mas agora era a hora.

Nunca entendi por que Justino Martins, diretor da "Manchete", me confiou a tarefa. A revista estava cheia de repórteres experientes —dois deles os poetas Lêdo Ivo e Homero Homem, certamente amigos de Rosa. Eu tinha, se tanto, seis meses de profissão e acabara de chegar à "Manchete". Mas foi assim. Justino convocou-me à sua mesa, deu-me o número do telefone de Rosa e só me recomendou que chamasse o homem de embaixador —o que Rosa também era.

Naquele mesmo dia, telefonei. O próprio Rosa atendeu e, muito amável, se desculpou, alegando que estava escrevendo seu discurso de posse e não podia parar para dar entrevistas, mesmo que fosse para "Manchete". Eu insisti, "Mas, embaixador...". E ele, firme. Talvez tocado pela evidente juventude do repórter, sugeriu que eu telefonasse no dia seguinte —quem sabe já teria terminado o discurso. Fiz isto, mas, não, ele não havia terminado. Como consolação, disse que, se eu fosse à cerimônia, me daria uma cópia do texto.

Rosa tomou posse na quinta-feira, 16. Ao fim do discurso e sob a chuva de aplausos, saiu pelo salão apertando mãos, como se levitasse. Parecia encantado, não via ninguém –só a mim cumprimentou duas vezes, sem saber quem eu era. E o coração resistiu bem, não o traiu.

Deixou para traí-lo três dias depois, na noite de domingo, 19, no seu apartamento, em Copacabana.

E eu me esquecera de pedir-lhe o discurso.

sexta-feira, 15 de setembro de 2017

A Melhor da Galáxia era uma fábrica de apelidos. . .

Por Roberto Muggiati
Fotos Acervo RM

A arte de brincar com as palavras sempre foi uma verdadeira obsessão nas redações de Bloch Editores, em particular na Manchete (que sobrevive, 65 anos depois de sua criação, nesse apetitoso blog Panis Cum Ovum). Não saciados em escrever suas matérias e jogar conversa fora nos corredores, redatores e repórteres se aplicavam em criar apelidos, numa atividade tão espontânea e natural como o próprio ato de respirar.

Primeiro, preciso explicar a origem do apelido “a melhor da galáxia” para designar a Manchete.
Adolpho Bloch não suportava o sucesso de Justino Martins, embora Justino, um dos maiores
“revisteiros” do Brasil, tivesse tirado a Manchete do limbo em que ela viveu em seus primeiros oito anos e a transformado na maior revista do país. No final da década de 1960, Adolpho tirou o “Índio” – como chamava o Justino – da direção da revista, mas a manobra não deu certo. Justino voltou à direção da Manchete em alto estilo no início dos 1970. Em 1975, Adolpho defenestrou Justino de novo e colocou este que vos escreve na direção da revista. Para botar panos quentes na história, prometeu ao Justino uma tarefa maior – a direção de uma revista de decoração e jardinagem – e ofereceu-lhe uma megafeijoada de despedida no restaurante do terceiro andar, um evento para quatrocentos talheres. Entre os convidados de honra estava JK – o ex-Presidente Juscelino Kubitschek de Oliveira – que ganhara de Adolpho um escritório nobre no prédio da Manchete e ocasionalmente assinava resenhas de livros na revista. JK tomou a palavra e decolou: “És um homem feliz, Bloch. Tens a melhor revista do Brasil. Indisputavelmente da América Latina; tens a melhor revista do mundo – quiçá da galáxia!” O regabofe foi na terça-feira, um dia menos tenso: a Manchete fechava na segunda-feira e ia às bancas na quarta. Nas manhãs de quarta aguardávamos ansiosamente os exemplares da revista que vinham da gráfica em Parada de Lucas. No dia seguinte à feijoada, Alberto de Carvalho, nosso assistente de redação – título que não queria dizer nada e dizia tudo – adentrou a sala com aquela ginga de carioca do Estácio e perguntou: “Já chegou a melhor da galáxia?” A partir daí a Manchete ganhou um de seus codinomes mais nobres, cunhado por um ex-Presidente da República.

Alberto chamava a todos afetuosamente de Professor de Astúcia. Os apelidos eram incontáveis. Entre os contínuos, conhecidos como “siris”, havia o Sammy Davis Jr. – era até caolho como seu sósia – e o Tim Lopes, com seus cabelões à moda do famoso cantor Tim Maia. O rapaz saiu da Manchete, estudou jornalismo e, como Tim Lopes, se tornou o mártir da reportagem que todos conhecem.

Ainda outro contínuo foi apelidado de Pablito Cubano pelo chefe de reportagem João Luiz de Albuquerque. O João desconfiou que conhecia a cara do rapaz de algum lugar, fuçou umas revistas antigas e descobriu que ele era o menino que viajou clandestino no trem de aterrissagem de um avião do Galeão para Havana, por admiração a Fidel Castro, que tinha acabado de fazer sua revolução em Cuba.

A fotografia também tinha seus apelidos. Frederico Mendes – nosso Woody Allen de plantão – passou a ser O Encucadinho. Dois “retratistas” reconhecidamente bem dotados se tornaram Tromba e Tripé (apelido que se referia também a uma das ferramentas de trabalho). Jovenzinho, Ayrton Camargo Jr foi seduzido pela Márcia Ramalho e passou a ser chamado de Ayrton Ramalho; o mais incrível na sua trajetória e que tempos depois ele se juntou com uma mineira de Rio Casca que faria sucesso em Los Angeles como Rainha do Anal no cinema pornô com o nome de guerra de Elle Rio. E o laboratorista Claybom? Detestava margarina, mas era de origem francesa e se chamava Clement... O primeiro fotógrafo a fazer um selfie voando de asa delta, nos anos 70, tinha um sobrenome complicado: Paulo Scheuenstuhl virou Paulo Chuchu – aliás, era alto, atlético e agradava às moças. Voltando ao Tripé: ele viveu um episódio que acabaria em apelido, também. Foi designado para fotografar o ator e diretor teatral Ziembinski. A empregada o encaminhou para a biblioteca, imensa, onde Ziembinski estava pendurado no alto de uma escada à beira de um ataque de nervos. Viu o Tripé chegar e desabafou: “Meu filho, quando procuro um livro e não consigo encontrar, isso me dá uma vontade louca de dar o rabo...” O Tripé encontrou uma desculpa qualquer e se mandou. E essa versão masculina de TPM foi batizada por um intelectual da Manchete de Síndrome do Ziembinski. Outra grande figura era o Sérgio de Souza, o Serjão, um dos melhores fotógrafos de futebol. Certa vez recebeu duas ordens de serviço para o mesmo horário, 14 horas; uma em Niterói, outra na Barra. Indignado, Serjão correu para o chefe de reportagem com as ordens na mão: “Cara, olha só aqui, eu não sou onipotente, não!”

Depois da Revolução dos Cravos em Portugal, Adolpho acolheu na empresa vários lusitanos desgarrados, entre eles um fotógrafo de origem aristocrática, Antônio D‘Atoughia, que ficaria conhecido como o Conde; e Lúcio Macedo, apelidado de Salazar por ter sido o fotógrafo oficial do ditador deposto. Um destes era um senhor gordote e pedante que cuidava da portaria e, por sua semelhança física com o ratinho famoso, ganhou o apelido de Topo Giggio. Tempos depois, a Bloch contratou um plano de saúde barato para os funcionários do baixo escalão, praticamente inaugurado com a morte do Topo Giggio.

Alguns redatores já vinham com apelido: desconheço a origem do Jacaré do Irineu Guimarães; já o Pato Rouco do Ivan Alves era mais fácil de detectar.

Eremita, Cony e Tia Zeffa. 

Quando Adolpho Bloch presidiu a Fundação dos Teatros do Rio de Janeiro, promoveu a apresentação de uma série de óperas famosas, coroada pela Traviata dirigida por Franco Zeffirelli, que gostava de frequentar a redação. Já nos primeiros dias, ganhou a alcunha afetuosa de Tia Zeffa. Eu mesmo, como editor da revista e mergulhado em problemas de venda, gestão e jornalismo, passei a ser o Muggi das Crises (a cidade de Mogi das Cruzes, não lembro por que, estava em evidência na época). Nos tempos da longa barba, o Alberto me chamava também de Eremita. Já o Justino era o Lafra – de “lafranhudo”, xingamento do arco da velha com que foi brindado, sob golpes de guarda-chuva, pela crítica de ópera Maria Teresa Dal Moro, por não ter publicado um texto dela.

Alberto tinha uma sensibilidade especial para a música das palavras. Quando o Durval Ferreira, repórter de São Paulo, trouxe uma matéria sobre a Revolução Constitucionalista de 1932, pontificou o nome do coronel Palimércio de Rezende, um dos primeiros oficiais negros do exército brasileiro. Meu filho estava para nascer, ainda não tinha um nome escolhido, e o Alberto perguntou: “Quando é que chega o Palimércio?” A partir daí, todo bebê da redação passou a ser Palimércio ou Palimércia.

Outro apelido, altamente sofisticado, que saiu para fazer sucesso fora da Manchete, foi o do senador Marco Maciel: Mapa do Chile.

O Adolpho vivia às turras com um funcionário dos orçamentos gráficos chamado Possidônio. Da noite para o dia, ele virou Pseudônimo. Na época, as notas mais descontraídas e curtas da seção Leitura Dinâmica eram assinadas por pseudônimos, para evitar repetição de assinatura do mesmo redator. Lembro de alguns desses codinomes, que na verdade eram verdadeiros autoapelidos: Niko Bolontrim (Ney Bianchi), José Bálsamo (Cony), Jean-Paul Lagarride (Justino Martins), Acácio Varejão e, o mais curto de todos, Ed Sá (Ruy Castro). [O Ruy foi justamente interpelado por uma redatora nova, Marilda Varejão, sobre a escolha daquele codinome. “E existe algum Acácio Varejão?”, retrucou ele na defensiva. E Marilda, indignada: “Existe, sim! É o nome do meu pai.”] Um dia, um delator premiado (a Bloch foi pioneira também nessa instituição do momento) emprenhou o Adolpho pelo ouvido, alegando que pseudônimo não era jornalismo. O capo investiu então com toda fúria na redação: “Quero que parem imediatamente com esses possidônios!...”

Festa de meus 40 anos com Moët-Chandon: Layrton Cabral (Lalá), Antonio Rudge,
o Eremita, Justino, Wilson Cunha, ao fundo Murilinho. 

Adolpho dizia para o Alberto: “Você é inteligente, porra! Se tivesse diploma seria diretor da Manchete...” De meados dos anos 60 até o amargo fim da revista, em agosto de 2000, Alberto foi sempre a sombra (benfazeja) do diretor da Manchete, fosse quem fosse. (Eu fui o que mais tempo se sustentou no pau de sebo, para lá de vinte anos.). Ele sugeria títulos de matérias instantâneos e
vencedores. Para uma reportagem científica sobre bebês que eram botados para nadar assim que saíam do ventre materno: QUEM NÃO NADA, NÃO MAMA. No auge da fama do Rei da Canção e do Rei do Futebol, reunimos os dois numa capa. Desta vez, o título do Alberto não foi publicado, por ser politicamente incorretíssimo: O REI E O PERNA-DE-PAU.

No Santa Genoveva, com direito a escultura de Krajcberg, 1997.
A arte do Alberto não se restringia a apelidar só pessoas. Em 1996, fui destituído da direção da Manchete e ganhei um novo cargo com o nome pomposo de Editor de Projetos Jornalísticos. O afastamento também foi geográfico: me exilaram para uma sala imensa, um andar inteiro, a cobertura da terceira fatia do prédio do Russell, à qual se tinha acesso através de uma escada em caracol (que, felizmente, impedia a visita da chatos idosos ou lesados...). Mauro Costa, também destituído da chefia de reportagem da TV, foi ocupar um espaço daquele latifúndio. Pois o Alberto apelidou o local imediatamente de Santa Genoveva – alusão ao asilo de idosos que praticava maus tratos contra os pacientes, fato que chocou o Brasil e só foi descoberto por acaso no rastro de uma daquelas grandes enchentes cariocas.

eresópolis, 8-10-1977, sábado, aniversário do Adolpho: Machadinho,
Wilson Cunha, Heloneida Studart, o Eremita, Flávio de Aquino,
Ceres Feijó, Célio Lyra.

O próprio Adolpho Bloch dava a sua contribuição aos apelidos, às vezes de forma indireta ou
involuntária. Uma dia chegou da gráfica em Parada de Lucas e plantou um jovenzinho franzino na sala de redação: “Ele é um gênio. Vai trabalhar com vocês. Como escreve!” E, exagerando nos elogios: “É um verdadeiro Machado de Assis!” Antônio Roberto é conhecido até hoje como “Machadinho” e colegas da época ainda não esqueceram sua estreia literária. Fã ardoroso de Carlinhos de Oliveira, ele escreveu uma crônica sobre um operário que vinha todo dia cedo para trabalhar na cidade. Logo no início do texto, mencionou a “hedionda marmita”. Até hoje não perdoaram a Machadinho o hediondo adjetivo. Em pouco tempo, ele passou a competir com o maître Severino Ananias Dias fazendo discursos nas grandes ocasiões da casa – discursos que o Cony, com sua ironia de sempre, dizia que eram comissionados “em nome da redação da Manchete”. Foi num destes, um aniversário do Adolpho, que o Severino cunhou um adjetivo inolvidável, referindo-se à “figura inevolúvel de Adolpho Bloqui”. . .

Ruy Castro (Ed Sá) e Narceu de Almeida (Capelinha) em 19-12-72.
Pedro Bloch, que na verdade apelidou a própria revista – sugeriu a Adolpho que a chamasse de
Manchete, lembrava uma manchete de jornal e também imitava a sonoridade de Paris-Match, a maior revista da época. Teatrólogo e fonoaudiólogo, Pedro cuidou de um fotógrafo com problemas de fala que Adolpho mandou para se tratar com ele – e, de saída, o apelidou de João Farofa.

Quando o redator Narceu de Almeida resolveu largar tudo e partir para a vida alternativa na Região dos Lagos, sob a égide dos colegas Cabral e Maciel, ambos Luís Carlos, Jaquito sabia que não ia dar certo e comentava conosco: “O Narceu foi jogar pingue-pongue contra o vento...” Depois de um tempo, Narceu voltou e Jaquito o colocou em regime de free-lancer: o pagamento por matéria redigida, em vez do trabalho assalariado, tornava o redator mais produtivo e mais ágil. Orgulhoso da sua artimanha, Jaquito dizia: “Agora sim, o Narceu está correndo atrás!” E o apelidou de Capelinha, em alusão à marca dos taxímetros da época.

Havia uma recomendação aos novatos que fazia sucesso na redação da Manchete e devia ser escandida, com ênfase nos trocadilhos, em ligeiro sotaque iídiche:  "Se você desobedecer a ordem que Adolpho deu, e aquela que Jaquito havia dado, o Oscar ralha.”

Entre os autores de chistes mais antigos da Manchete, o repórter Ronaldo Bôscoli, que Nelson Motta chamou de “a língua mais rápida de Ipanema, um gênio da maledicência”, notabilizou-se pelos apelidos corrosivos que dava aos seus desafetos. Alguns exemplos: Sérgio Mendes (“compota de monstro”), Antônio Maria (“eminência parda da MPB”), Maysa (La Gorda), Elis Regina (“Vesguinha”). O apelido do próprio Bôscoli era Veneno. É bom lembrar também o fabuloso Nelson Rodrigues, que escrevia na Manchete Esportiva e criava apelidos os mais exóticos. Chamou Cláudio Mello e Souza, editor de Fatos&Fotos, de O Remador de Ben-Hur. Um dia eu vejo o Nelson adentrando a redação e saudando Adolpho Bloch como “Como vai este Cecil B. DeMille das revistas!” (pronunciando o DeMille como DeMaille). Sérgio Porto, colunista da Manchete, que apelidou a si mesmo de Stanislau Ponte Preta, fez do redator Raymundo Magalhães Jr um alvo predileto. O escritor e acadêmico fazia questão de assinar seus escritos como R. Magalhães Jr. Sempre que Sérgio entrava na redação e via o Magalhães batucando com dois dedos na Remington, gritava: “Erre, Magalhães Jr!” Ou gozava da sua baixa estatura: “Toda vez que o Magalhães pega uma caixa de fósforo as pessoas pensam que ele vai
viajar...”

Raul Giudiccelli, outra das línguas mais ferinas da Bloch, fez toda uma catilinária em cima do Ledo Ivo, poeta e redator. Só lembro esta: “O professor deu zero para o Ledo Ivo e ele foi se queixar que a nota não era justa. O mestre explicou-se com o Ledo: – Desculpe, meu filho, mas não tinha nota mais baixa do que o zero...” Ainda em relação ao Ledo Ivo, o Cony retificou o clichê “ledo engano” para “ledo e ivo engano”, usado até hoje por Cony e outros escribas.

A Santa Ceia em cor: Alberto, Ivan, Cunha, Flávio, ao fundo Sammy Davis Jr,
Eremita, Heloneida, Magalhães, Passos, Argemiro, Pedrão, Ney, Cony, Irineu.

Voltando ao Alberto: lendo agora o livro de contos inéditos de Scott Fitzgerald, I’d Die For You,
publicado 77 anos após a morte do autor, encontrei uma personagem – típica serelepe dos anos 30 – chamada Trouble, que só se poderia traduzir, é claro, por Encrenca. Pois sempre que aparecia na redação uma daquelas que a gíria do malandro chamava de “chave de cadeia”, o Alberto se referia a ela como Encrenca.

Almoço para Lula no Russell na véspera da votação do 2º turno, sábado 16-12-89.
Teria sido na Manchete que Brizola pela primeira vez chamou Lula de "sapo barbudo". 

Não faltaram encrencas na história da Manchete. Uma que mais fez jus ao apelido foi a produtora de moda de sobrenome Guerra que deu um tiro no recém-chegado diretor de arte Serge Elmalan. O
coitado do Serge acabara de chegar da França com mulher e cachorro e se instalara num
apartamento no Lido. Sofreu o imediato assédio e atração fatal da Guerra e levou um balaço.
A bala ficou alojada num ponto melindroso da região do ombro e teimava em não sair. Adolpho não hesitou: mandou o Serge para Houston aos cuidados do Dr. Michael DeBakey, o cirurgião que revolucionou a medicina na Segunda Guerra, levando o atendimento para a própria zona de combate (procedimento satirizado pelo filme M*A*S*H). Nem um craque como o Dr. DeBakey conseguiu retirar a bala guerreira que acompanhará o Serge em suas andanças pelo mundo até o fim dos seus dias. Um parêntese para dar uma ideia de quem era Serge Elmalan. Convidou-me uma noite para uma reuniãozinha en petit comité no seu apartamento. Quando adentrei a sala, lá estavam a romancista Françoise Sagan (Bonjour Tristesse), a Begum Aga Khan (viúva de um dos homens mais ricos do século), o cineasta Jacques Deray (dirigiu Alain Delon em La Piscine) e Gilberto Tumscitz e sua mãe (Serge adivinhou já no jovem repórter o futuro autor de telenovelas de sucesso, Gilberto Braga).

Outra Encrenca que fez nome na Manchete foi Marisa Raja Gabaglia (1942-2003). Fomos colegas na reportagem de Frei Caneca em 1966. Inteligente, neurótica, sedutora, fez sucesso como cronista, seu livro Milho Para a Galinha Mariquinha virou best seller. Foi repórter da TV Globo por dezoito anos, fez novela com Tônia Carrero. Marisa teve uma paixão fulminante pelo cirurgião plástico Hosmany Ramos, ex-assistente de Ivo Pitanguy, que de repente partiu para uma surpreendente carreira criminosa e, depois de várias fugas, está preso até hoje. Marisa foi pioneira do Amor bandido, título do livro que publicou em 1982 sobre sua relação com Hosmany.

Vou parando por aqui, porque “a melhor da galáxia” é como aqueles vampiros velhos que – mesmo com bala de prata e estaca no peito – se recusam a morrer.